sexta-feira, 12 de novembro de 2010
O que é Dharma?
Por detrás de toda ação existe um desejo. Mas qual ação faremos para satisfazermos o desejo é uma questão de escolha. Podemos fazer de um jeito, do jeito contrário, ou de um jeito diferente. Então, o que guia nossas escolhas?
Dentro da tradição védica temos um conceito fundamental denominado dharma. A palavra dharma vem da raiz sânscrita dhr, que quer dizer sustentar. Portanto o dharma é aquilo que sustenta, que possibilita, que regula, são as leis, os valores, um estilo de vida. Nosso primeiro impulso seria definir dharma como “o que é ético” ou “o que é moralmente correto”. Mas esse seria um erro; dharma é muito mais do que isso. Dharma é visto como um dos quatro purushárthas, ou objetivos da vida humana. Além de dharma e moksha, sobre o qual falaremos mais tarde, os outros dois purushárthas são artha e káma, segurança e prazer. Na busca de alcançar esses objetivos, e satisfazer nossos desejos, nos deparamos com a necessidade de fazer escolhas, e o que nos guia nessas escolhas é dharma.
Mas porque devemos ter esse cuidado todo com a escolha da ação? Afinal de contas, contanto que a ação nos dê o resultado imediato esperado, tudo bem. Bom, na verdade, a coisa não é assim tão simples. Os Vedas dizem que toda ação, karma, tem resultados que podem ser de dois tipos: visível, drshta phala, ou invisível, adrshta phala. O visível é aquele imediato. Se você avança um sinal de trânsito (semáforo) e quase provoca um acidente vai ouvir a indignação dos outros motoristas. O invisível fica desconhecido e vem a frutificar mais tarde, quando você recebe a notificação da multa por ter avançado o sinal! O resultado, seja visível ou invisível, pode ser agradável ou desagradável. O resultado agradável chamamos punya, e o desagradável chamamos pápa. A partir do momento em que entendemos que existe uma ordem nesse universo que regula nossas ações e seus resultados e que sem dúvida sofreremos o resultado de nossas ações mais cedo ou mais tarde, ou até mesmo quem sabe numa próxima vida, naturalmente passamos a ser mais cuidadosos ao escolhê-las e buscamos nos guiar pelo dharma.
O conceito de dharma não pode ser entendido, ou explicado, em poucas palavras. Vamos tentar compreender a extensão que essa palavra alcança entendendo os conceitos de sámánya dharma e vishesha dharma.
Sámánya dharma é o dharma geral, regras gerais aplicáveis a todo membro da sociedade, ou os valores aceitos universalmente. Não gostamos que nos agridam, portanto não devemos agredir os outros. Não gostamos quando os outros nos enganam ou mentem, portanto não devemos mentir ou enganar. Vishesha dharma é o dharma específico de um grupo ou de um indivíduo dentro da sociedade. Se sou um médico, devo ser responsável e respeitar meus pacientes. Como filho devo cuidar de meus pais. Dentro da sociedade védica esses dharmas específicos eram muito bem definidos e divididos em áshrama dharma e varna dharma.
Um áshrama é um período da vida de uma pessoa. A tradição védica fala sobre quatro áshramas: brahmacharya, grhastha, vánaprastha e sannyása. No primeiro período da vida o indivíduo se dedica ao estudo. Nesse período, chamado brahmacharyáshrama, a dedicação deve ser completa e o relacionamento com o guru deve ser priorizado em detrimento de outros. É por isso que a palavra brahmacharya está tantas vezes associada ao celibato. Em um segundo período da vida o indivíduo se casa, tem filhos e sustenta sua família e a sociedade com seu trabalho. Essa fase é chamada grhastháshrama. Depois que os filhos estão crescidos, casados e que o indivíduo não é mais tão necessário no prover da família vem a terceira fase, vánaprastháshrama. A pessoa se aposenta e tem a oportunidade de se dedicar ao estudo das escrituras em busca do auto-conhecimento. Essa é uma fase que serve de adaptação para a seguinte, sannyásáshrama, quando o indivíduo se desvincula de todos os seus compromissos com a sociedade e relacionamentos familiares e se torna um renunciante. Essas fases bem definidas da vida do indivíduo servem para guiá-los em suas escolhas. Cada indivíduo em cada um desses áshramas tem seus direitos e deveres bem definidos. Esses “direitos e deveres”, esses “certos e errados” são o dharma, ou o áshrama dharma de cada indivíduo em cada fase da vida.
O conceito de castas é bem conhecido, mas sua origem é de modo geral ignorada. Os varnas, ou castas têm sua origem nos Vedas, mas, ao longo do tempo seu significado foi sendo deturpado. O conceito de varnas é usado nos Vedas para classificar os vários tipos de mentes e elucidar o tipo de atividade que cada indivíduo, com certas características mentais, estariam mais aptos a seguir. Esta classificação não era para ser algo hereditário como veio mais tarde a se transformar. São quatro os varnas. Os indivíduos com uma grande capacidade intelectual, com habilidades para serem professores, intelectuais, pesquisadores, eram chamados Bráhmanas. Aqueles com forte impulso para a ação, clareza de mente, senso de dever para com a sociedade como um todo, os guerreiros e governantes eram chamados Kshatriyas. Os indivíduos do terceiro grupo, Vaishyas, também têm um forte impulso para ação, mas uma visão mais restrita. Eles visam as próprias necessidades mais que as necessidades coletivas. São os comerciantes. E por último temos os Shúdras. Esses não têm nem muito impulso para ação, nem capacidade mental extraordinária, mas são necessários dentro da sociedade para desempenhar os trabalhos mais mecânicos.
Dentro da sociedade védica o dharma dos indivíduos, em cada áshrama e varna, ajudava a regular e harmonizar o convívio dentro da sociedade. No momento em que o desejo aparece é o dharma que deve guiar o indivíduo na escolha da ação adequada.
O Dharma do Yogí
O quarto purushártha é moksha, a liberação. Aquele indivíduo que busca moksha entende que a satisfação dos desejos não trazem uma felicidade permanente e por isso busca a liberação definitiva do senso de limitação que leva ao sofrimento. Mas mesmo esse indivíduo não está livre de ter desejos e de ter que escolher a ação adequada para satisfazê-los. Na verdade, para esse indivíduo, o yogí, a escolha de seguir o dharma, seja qual for sua fase da vida, predisposição mental ou escolha profissional, é pré-requisito fundamental. Uma vida de yoga é uma vida essencialmente dhármica. Nos dias de hoje, mesmo na Índia, o dharma pessoal não é assim tão claro quanto no tempo védico. A sociedade se modificou e com ela o dharma. O dharma não é absoluto, muda no tempo e no espaço. Sendo assim, cada um deve buscar compreender seu próprio dharma dentro da sociedade e da família em que nasceu, e assim guiar suas escolhas e ações. Mas mesmo nos dias de hoje podemos utilizar um velho conselho indiano que diz que, em caso de dúvida, devemos procurar uma pessoa sábia e não envolvida diretamente na situação para aconselharmo-nos. Dentro da sociedade indiana, até nos dias atuais, essa pessoa geralmente é o guru.
Os desejos e as qualificações da mente
Uma coisa é saber o que fazer, outra coisa é pôr esse conhecimento em prática. Nossos desejos são fruto das nossas programações mentais, nossas predisposições, ou samskáras. Muitas vezes os motivos que nos levaram a um desejo são ignorados por nós, ficam no nosso inconsciente, e nesse caso é ainda mais difícil resistir à ação errada. Se quisermos seguir uma vida dhármica temos que conhecer nossa mente para que as ações, aos poucos, deixem de ser impulsivas e passem a ser deliberadas. Essa é uma grande qualificação da mente que deveria ser almejada por todo yogí. Uma mente qualificada terá a capacidade de controlar tanto suas ações externas quanto suas emoções. Essas duas qualidades são citadas tanto em textos de Vedánta quando em textos de Yoga. A capacidade de controlar as ações em um nível físico é dama. E a capacidade de controle dos pensamentos e emoções, ou seja, a nível mental, é shama. Mente e corpo não são separados, um está constantemente influenciando o outro.
O desejo começa ao vermos um objeto. Se nesse momento percebemos aquele primeiro pensamento do tipo “seria bom se eu...” podemos conscientemente afastar o segundo, o terceiro e o quarto pensamentos que iriam reforçar o primeiro e finalmente levaria o desejo a se instalar por completo em nossas mentes. Uma vez instalado o desejo, só há uma opção, controlar nossos órgãos de ação, essa qualificação é dama. Nesse caso a manifestação no nível físico é controlado. Podemos até chegar a ficarmos “vermelhos de raiva”, mas seguramos a vontade de agredir alguém.
Podemos nos ajudar a ter uma disciplina da mente através do disciplinar do corpo e também podemos ajudar a disciplinar o corpo através do disciplinar da mente. A estreita interação do corpo com a mente possibilita isso. É aí que ásanas, pránáyámas e outras práticas, físicas ou não, do Yoga nos ajudam a ter clareza de mente para escolher a ação correta e colocá-la em prática.
Devemos conhecer a mente, controlar o corpo, escolher a ação dhármica e esperar o fruto da ação, confiantes de que ele é sempre adequado e em harmonia com a ordem do universo, mesmo se não for o desejado. E depois reavaliar os desejos, escolher outra ação, e por aí vai. Parece simples em teoria, na prática nem tanto. Mas quem disse que uma vida de Yoga era para ser fácil?
Texto de Paula Ornelas, professora de sânscrito e vedanta no Rio de Janeiro
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