terça-feira, 24 de maio de 2011

Reflexões sobre o estudo do Daksinamurti Stotram




Entre os stotrams compostos por Adi Shankaracarya, Sri Daksinamurti Stotram é um dos menores e ainda o mais rico entre eles. Com grande maestria, Shankara debate os argumentos daqueles que se sustentam numa visão dual do universo e estabelece a sua visão não dual.

Iniciando com uma visão plural da nossa percepção em relação ao mundo, o stotram revela que esta visão está sustentada por uma realidade, livre de limitações. E esta verdade deve ser revelada com a ajuda de um professor adequado.

O stotram aponta para o fato de que maya é uma grande força capaz de confundir até mesmo grandes pensadores. Sendo que a realidade “ocultada” por esta força deve ser revelada através de uma análise de nossas próprias experiências pelo meio de upasana (reflexão, meditação).

Os dez versos do stotram estão preenchidos por significados que necessitam de um professor para destrinchá-los, para que o aluno tenha o entendimento correto. Mas, por enquanto, vamos nos ater apenas aos dois primeiros versos que apontam para esta questão do que é o indivíduo? O que é Isvara? E qual o papel de maya na relação entre estes dois elementos.

Os dois primeiros elementos serão estudados nos dois primeiros versos, sendo o primeiro dedicado ao indivíduo e o segundo a Isvara. O que nos aponta para a mahavakya “tat tvam asi”.

Minha natureza é Consciência

O Ser é revelado por Shankaracarya através destes versos como Consciência. Esta que faz com que mente e sentidos tornem-se sensíveis às informações que recebem. Como esta Consciência não é perceptível a eles, tendemos a não reconhecê-la. A Consciência não é uma parte, produto ou propriedade do corpo, ela o permeia. Não está limitada às formas do corpo. Ela dá vida ao corpo e não é reconhecível na ausência deste corpo.

A verdadeira natureza

Esta Consciência é minha verdadeira natureza é pode ser chamada também de Atma. Para reconhecer este atma, o verdadeiro Eu, e para nos ajudar a mudar a visão de identificação do corpo para a identificação com Atma, as escrituras nos apresentam uma metodologia chamada Drk-Drishya Viveka, ou seja, eu sou diferente de qualquer experiência. Desta forma o mundo das experiências é percebido por mim, mas Eu sou diferente do mundo. Tudo aquilo percebido como objeto, deve ser visto como não sendo Eu.

Isto é fácil quando falamos de objetos externos, mas quando falamos de corpo e mente, torna-se extremamente difícil por causa de nossa identificação com eles. No entanto, este corpo também é percebido por Mim, e portanto, também deve ser visto como um objeto.

Neste mesmo raciocínio, a mente também é um objeto a ser percebido. Eu sou diferente de tudo isso, pois me percebo como esta Consciência que os testemunha.

A discussão sugerida por Shankara no primeiro verso é principalmente voltada para aqueles que já têm uma visão clara de Atma Anatma Viveka (o discernimento entre sujeito e objeto). Este nível de entendimento é subentendido pelo autor.

Este verso fala sobre a natureza do atma (tvam).

“Assim como no sonho, um mundo, como uma cidade vista no espelho, é visto dentro do próprio indivíduo, assim também tudo está no atma e é visto como se fosse externo, devido a maya. No momento da realização, o Eu livre de dualidade é visto claramente. Saudações a este mestre que é Daksinamurti.”

A visão de atma e anatma é exposta por Shankara através do exemplo do reflexo da cidade em um espelho e também desta mesma cidade vista em um sonho.

Este exemplo aponta para o fato de que o universo (jagat) não existe por si só, mas é sustentado por Mim.

O universo não pode ter surgido do vazio, pois o universo é uma projeção da Consciência. E então, não há como uma projeção se sustentar por si só.

O sonho parece externo, mas está dentro da minha mente. Porém, sonho e mente estão contidos no atma. Então, dentro e fora são apenas pontos de vista enganosos, estabelecidos pela ignorância em relação à minha própria natureza.

Surge a questão: “Por que esta criação existe?”

De fato, a criação não existe. Ela é apenas uma projeção.

Maya é aquela que produz o impossível, pois não há criação. A palavra maya significa aquela que não existe. Isto aponta para o fato de que as projeções das experiências não refletem a minha realidade.

O segundo verso fala sobre Isvara (tat) e nele há uma brilhante analogia para explicar maya que é, na verdade, a “capacidade” de manifestação de Isvara:

“Assim como é o broto dentro da semente, estava em estado não-manifesto, assim também este universo antes da criação. Uma grande variedade é produzida novamente, por maya, dentro do espaço-tempo. Assim como o mágico revela uma criação, assim também faz o grande yogin, à sua vontade. Saudações a este mestre que é Daksinamurti.”

As escrituras apresentam Brahman como a causa inteligente e material de todo o universo. De acordo com a Chandogya Upanishad: “existe apenas Brahman antes da criação, que serviu como causa inteligente e material para esta manifestação."

A criação é apresentada por diferentes filosofias, em diferentes formas, como apontado no verso. Shankaracharya em seus comentários nas Upanishads, discute teorias sobre a criação de forma elaborada. O famoso exemplo do pote e do barro é analisado exaustivamente.

A questão básica é: antes do pote se originar do barro, este pote já existia ou não no barro? Um pote surgiu do barro, ou um pote não-existente surgiu?

Ao analisarmos, perceberemos que ambos os casos não são possíveis. Um pote já existente, não surge, pois já está lá. E obviamente um pote não-existente não pode surgir, pois isto vai diretamente contra o básico princípio da ciência: “Nada se cria.”

Mesmo gramaticalmente, uma frase não pode existir sem um sujeito. Existir não é algo a ser alcançado por nenhum de nós. Um objeto não-existente não poderá existir.

A conclusão é que tanto objetos existentes e não-existentes não podem ser criados, e por isso afirma-se que não há criação.

Desta forma, por que falamos tanto sobre a criação. Criação é uma palavra errada para apontar outro fenômeno que apontamos anteriormente como maya.

Quando um objeto existe de forma não-manifesta, ele pode se manifestar (assim como o broto da árvore dentro da semente). Através de maya, o não-manifesto se manifesta. Esta manifestação é chamada de forma errada de criação.

Quando esta “capacidade de manifestação de Brahman” chamada maya está ativa, tempo e espaço surgem.

Quando Brahman é percebido através da ótica tempo e espaço, o universo torna-se plural.

Shraddha – A Confiança na autoridade das escrituras

Até mesmo a Shruti parece ser contraditória. Dizer que Brahman não é um objeto perceptível através da mente, mas que, ao mesmo tempo deve ser reconhecido pela mente, parece ser uma contradição. Mas não é; é perfeito.

Algo deve ser seguido, não apenas “engolido”. Em uma crença, você engole. É algo que tem que ser aceito por completo, sem questionamento. Qualquer questionamento que se estabeleça é apenas para estabelecer ainda mais a crença. O que na verdade não é nenhum questionamento. Por isso há tantas tentativas para tentar se provar que alguém existiu em determinado momento da história. Se alguém existiu ou não, não é o que importa. O que importa é o ensinamento.

Maya não pode ser explicada. Não há como objetificar ou qualificar maya. Eu creio neste conceito pois está colocado nas escrituras, e elas são autoridade naquilo que aponta para o conhecimento de Brahman. As escrituras se estabelecem em sua maioria em fatos. Exemplos concretos, mas quando se trata de maya, eu simplesmente tenho que dar um voto de confiança às escrituras, pois nem mesmo elas podem me explicar o que é.

Concluindo:

Podemos, obviamente, falar do início e fim de determinados segmentos desta “criação” , como no caso da árvore, tendo um início e um fim, ou até mesmo apenas na semente. Mas quando ligamos estes dois objetos (semente-árvore), criamos um ciclo e não podemos mais determinar o início ou o fim.

A ciência não consegue resolver esta questão, portanto, as escrituras dizem que quando olhamos para este modelo de “criação”, devemos deixar de lado a orientação científica. O verso 3 do XV capítulo da Gita aponta para isso:

“Aqui a sua forma não é percebida como é, tampouco a final, nem a origem, nem a permanência. Cortando esta árvore (asvattha), que tem raízes muito crescidas, com a forte arma do desapego.”

Portanto, este ciclo de criação e dissolução é fruto de maya, e não pode ser determinado seu ínicio ou fim, pois sua natureza é Brahman, que é livre de limitações.

A liberdade do samsara, surge da compreensão da natureza desta manifestação, incluindo o complexo corpo-mente. Assim como no exemplo dado anteriormente, é preciso ver que a manifestação é como um reflexo no espelho. Sendo este reflexo sustentado por sua natureza imutável que é Consciência, Atma ou Brahman.

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