Esta
frase pode parecer bem estranha, quando a dizemos no meio do Yoga.
Mas
é graças a ele que estou aqui, agora. Foi através dele que fiz minhas escolhas
a vida inteira. Foi através dele que criei minha identidade na sociedade e
posso ser quem sou. Portanto, tenho que gostar muito do meu ego.
Existe
um preconceito muito forte em relação à esta palavra. Dizer que você tem um
ego, ficou tão agressivo ou pejorativo quanto dizer o que se dizia há anos
atrás sobre minorias étnicas ou opção sexual.
Na
verdade, o que houve foi uma grande confusão causada por maus professores, que,
na tentativa de manipular mais facilmente a mente de seus alunos, começaram a
espalhar esta idéia.
Ora,
se não tenho a capacidade ou discernimento de fazer uma escolha, acabo
aceitando o que é dito, ou, pior ainda, deixo escolherem por mim.
É necessário entendermos que o ego não é
bom, nem ruim em si mesmo. Ele apenas cumpre uma função em nossas vidas.
Escolher.
Como
disse no primeiro parágrafo deste artigo, é através do ego que faço minhas
escolhas. Se não fosse por ele, não sairia da minha cama todas as manhãs. Não
conseguiria escolher minhas roupas, nem o que fazer.
É
através do ego que consegui formar minha personalidade. É através dele que
consigo interagir com o mundo.
O
ego é esta noção de eu que me estabelece como um indivíduo. A ele se atribui um
nome, características físicas, emocionais e sociais, através dos quais eu
consigo me reconhecer.
Imagine
se não houvesse nomes? Como chamaríamos uns aos outros? Imagine se não houvesse
diferenças físicas ou emocionais entre todos nós? Qual seria a graça da vida,
sendo tudo igual?
Por
causa do ego, podemos ter profissões diferentes, idéias diferentes, podemos
cumprir diferentes papéis, e desta forma, construirmos uma sociedade onde cada
um contribui de uma forma diferente.
Segundo
a visão do Vedānta, nós somos dotados de uma ferramenta bastante especial para
nos relacionarmos com o mundo. Em sânscrito, ela recebe o nome de antaḥkāraṇa,
ou instrumento interno.
A grosso
modo poderia ser traduzido apenas como mente. Mas esta mente é subdividida em
quarto partes com diferentes funções, Segundo Śri Śaṅkarācārya, no
Tattvabodhah.
“A
partir do aspecto sáttvico dos cinco elementos, nascem a mente (manas),
intelecto (buddhi), ego (ahaṅkāra) e memória (citta). Estes formam o antaḥkāraṇa.”
“A
natureza da mente é a dúvida”.
“A
natureza do intelecto é a decisão.”
“A
natureza do ego é esta noção de que eu faço.”
“A
natureza da memória é guardar aquilo que já foi vivido.”
Depois
de explicar a natureza de cada um, Śaṅkara, explica também como cada um
funciona e se comporta relacionando-os com determinados atributos de certas
deidades.
“A
deidade que preside a mente é a lua.” (pois assim como a lua, a mente tem
fases).
“Brahmā
é aquele quem preside o intelecto.” (já que a partir de decisões, objetos e
situações são criadas).
“Rudra
preside o ego.” (através de nossas ações, promovemos mudanças).
“Vāsudeva preside a memória”.
(Vāsudeva representa a manutenção).
Portanto,
não é interessante este conceito de dissolvermos ou destruirmos o ego. Esta foi
uma idéia mal colocada, por maus professores, que tinham o intuito de moldar a
mente de seus alunos à sua forma.
Estes
mesmos professores afirmaram que estas disciplinas estavam contidas nos Śāstras
e era o objetivo de uma vida de Yoga.
Na
verdade, não há nenhuma história destas nos Śāstras, e também sabemos que o
objetivo de uma vida de Yoga é autoconhecimento.
Para
podermos desfazer esta confusão, podemos recorrer à algumas escrituras que
lançam luz sobre esta questão. Um exemplo clássico desta confusão é o segundo
sūtra de Patañjali sobre o Yoga. Na maioria das traduções, sempre vemos que o
sūtra é traduzido ao pé da letra e não acompanha um comentário de um professor
que esteja, de fato, ligado à Tradição.
A
tradução do sūtra acaba ficando sem sentido. “Yoga é a cessação dos movimentos
da mente”. Ou o “controle dos movimentos da mente”. Quando analisamos esta
afirmação com cuidado, percebemos que é um acontecimento impossível. A não ser
que estejamos em sono profundo ou inconscientes. Outra coisa impossível de ser
feita, é controlar o que será pensado. Nenhum de nós tem esta capacidade. Os
pensamentos simplesmente vêm. Portanto, Patañjali estaria equivocado ou somos
nós que não tivemos clareza suficiente para compreendermos sua idéia?
Temos
que compreender que a literatura dos sūtras, exclui tudo aquilo que é excessivo
em sua escrita para facilitar sua memorização. Portanto, passando os olhos, sem
o devido cuidado sobre o texto, pode deixar lacunas abertas.
yogaścittavṛttinirodhaḥ || 2 ||
“Yoga é
a cessação [da identificação] com os
cittavṛttis”.
Aqui
Patañjali define o que é esta disciplina chamada Yoga. Normalmente este sūtra
é traduzido como o “controle da mente”, mas novamente temos que atentar para o
que é este controle. Na palavra nirodhah, está o radical rudh. Rudh
significa controlar sem esforço. Controlar naturalmente. Usando o esforço
quando necessário. Mas mesmo entendendo este radical, a compreensão deste sūtra
fica um pouco superficial.
Na Bhagavad
Gītā, Kṛṣṇa define o Yoga da seguinte forma:
Tam
vidyādduhkhasaṁyogaviyogaṁ yogasañjñitam sa
niscayena yoktavyo yogonirvinnacetasā. (Cap 6, 23)
“Que
seja sabido que esta dissociação da associação com a dor é chamada Yoga. Yoga
deve ser seguido com determinação e sem uma mente que tenha indiferença.” O
sofrimento é fruto de nossa identificação com os vrttis (julgamentos,
pensamentos, projeções...).
Quando
me identifico com um destes objetos, automaticamente me vejo limitado à forma e
atributo que vem junto deste.
E este é
o problema que podemos ter em relação ao ego. O ego se atribui as diversas
qualidades. Mas eu devo entender que são qualidades do ego, e não minhas.
É
verdade que diversas vezes, nas nossas vidas, nos vemos fortemente apegados a
estes atributos, e fazemos todo o esforço possível para não perdê-los.
Neste
momento, a disciplina do Yoga se mostra valiosa, pois é através do autoestudo
que começamos a discernir quem somos e quem pensamos ser.
Através
desta disciplina há um esclarecimento de quem sou eu e quem é o ego.
O eu é
sempre livre, imutável e nada faz. Portanto também não se relaciona com o
resultado das ações. O ego é quem faz. Por isso em sânscrito é chamado de ahaṅkāra,
ou, o eu que faz. Este sim, por agir, lida com os resultados de suas próprias
ações.
Uma das
coisas mais difíceis, para todos nós, na vida, é saber lidar com os resultados
das nossas ações.
Sempre
que agimos, pensamos ter o poder sobre o resultado da ação. E, pior do que
isso, nos qualificamos Segundo estes resultados.
Quando
um resultado é favorável, nos achamos vencedores, pessoas de sucesso. Ficamos
felizes, pois apoiamos aquilo que somos nos resultados.
Da mesma
forma, quando um resultado é “desfavorável”, nos classificamos como incapazes,
e ali nos tornamos pessoas infelizes.
Usei as
palavras favorável e desfavorável entre parênteses, porque na verdade esta
qualificação é feita pelo ego. Pelos gostos e aversões que possuo na vida. Na
verdade um resultado é apenas um resultado. E pessoas diferentes podem
qualificar um mesmo resultado de formas diferentes. Portanto o problema não é o
resultado em si, mas como me identifico com ele.
O ego,
quando não cumpre o seu papel devidamente, faz com que nos tornemos pessoas
exageradamente exigentes.
Estes
padrões de exigência são impostos pela sociedade. Seja forte, belo, rico, etc…
Mas
estes padrões se estabelecem apenas quando há comparações. Seja forte, mas qual
é o parâmetro de força? Seja rico, mas o que indica riqueza? Só quando há
comparação. Sou mais forte que fulano, sou menos rico que beltrano.
Não há
nada de errado em ser rico, pobre, alto, baixo, gordo, magro e etc. Quando eu
entendo que todos estes são atributos do ego e que se modificam constantemente.
Quando tenho este entendimento, me dou conta
de que apesar de todas estas mudanças, a pessoa que eu sou, jamais se
modifica.
Para
conquistar este entendimento, é necessário maturidade, clareza. É necessário
também querer este conhecimento.
Há um
exercício bastante simples que podemos fazer todos os dias. Bastante familiar
para aqueles que já praticam Yoga.
Ao final
de uma prática de āsanas, sempre há um momento dedicado ao relaxamento. Neste
momento, fechamos os olhos. É neste momento que deixamos de fazer uma das
comparações mais fortes que geralmente fazemos, que é a visual.
Agora
ninguém está olhando para você, e você não olha para ninguém. Ninguém está te
julgando, tampouco você julga. Ninguém está se comparando. Ninguém está
exigindo que um papel seja desempenhado de sua parte, nem você, de outra
pessoa. Você não exige nada de si mesmo. Você é apenas você. Esta pessoa
tranquila. E esta tranquilidade não é fruto de nenhum esforço. Esta
tranquilidade se revela quando você ser permite ser quem você é.
Você não
é o indivíduo composto por atributos sutis e densos. Você apenas é.
O
julgamento é outra questão ligada ao ego que incomoda muitas pessoas. Já cansei
de ouvir a famosa frase: “não julgo”, ou então me dizem: “não julgue! Você é um
professor de Yoga!”
O
julgamento é uma faculdade do ego. E todos nós estamos julgando o tempo
inteiro. Não há vida sem julgamentos. É através do julgamento, feito pelo ego,
que estabeleceremos o que faremos, como nos vestirmos e etc. Por isso, eu
julgo, tu julgas, todos julgam!
Novamente,
aqui, temos que esclarecer que o julgamento não é bom, nem ruim em si. É apenas
o que o ego tem que fazer. E ainda bem que isso acontece, senão nada seria
feito nesta vida.
Por isso o julgamento é necessário. E necessário também é aprender a não
se ver como o julgamento que você faz. Você é uma coisa, o julgamento, outra.
Leve em conta que se você pratica Yoga hoje, é porque você julgou ser
algo interessante para a sua vida. Se você é vegetariano, é por causa do seu
julgamento. A sua escolha em não maltratar os animais, foi feita pelo seu ego.
Se você leu este artigo até aqui, foi graças ao seu ego.