sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Yoga, o quê? Para quê? Como? Para quem?

Yoga! Palavra que diz tanto a muitos e tão pouco a muitos mais. O que vem a ser o Yoga no seu sentido mais tradicional e profundo é algo que só o tempo, prática e estudo conseguem revelar.

O Yoga não é, certamente, fazer contorcionismo, não é uma ginástica exótica, nem levitar. O Yoga tampouco é uma técnica ou uma prática. Tudo isso são visões distorcidas e redutoras do Yoga. O Yoga é uma cultura que se estabelece numa visão da nossa natureza e num modo de vida coerente com essa visão. Neste sentido o Yoga é um meio e um fim em si mesmo. Por entre toda a diversidade humana é claramente perceptível que todo o ser humano busca o mesmo – felicidade. Não apenas nós, mas também os demais seres sencientes buscam o mesmo: afastar-se do sofrimento e perseguir e manter o prazer e felicidade. Enquanto animais e plantas se bastam com a segurança e a satisfação das necessidades básicas para serem absolutamente completos, nós não somos assim. Quando olho para as minhas cadelas não vejo que a Kali, que é negra, olhe para a Cuca, que é loira, e pense: Ah quem me dera ter assim o pelo mais longo e loiro… quem sabe devia pintar ou fazer umas madeixas…ainda por cima já estou cheia de brancas no focinho. É horrível! Por outro lado, a Cuca, que é menos de metade do tamanho da Kali, não pensa: quem me dera ser mais alta, correr com aquela delicadeza e elegância da Kali…acho que vou começar a andar em bicos de pés, quem sabe inventam qualquer coisa para me facilitar andar assim ou até uma operação…

Já o ser humano dotado de livre arbítrio, da capacidade de se auto-julgar, não se basta com a segurança e necessidades básicas para ser feliz. Queremos sempre mais! Primeiro a TV rectangular de grande ecran! Depois vem o plasma e o lcd e aquela mesma TV que me fez feliz em tempos tornou-se obsoleta, o que antes era bonito, tornou-se um monstro na sala e de cada vez que me cruzo com ela sofro e logo projecto a felicidade no plasma ou lcd. Há sempre uma cenoura à nossa frente que vemos nos ser acenada e a felicidade está sempre lá, mais à frente e nunca aqui. Este padrão é recorrente nas experiências que buscamos, nos objectos e nas relações. A questão que se coloca é se nós humanos alguma vez conseguimos encontrar essa felicidade e parar de buscar? Alguma vez nos sentimos completos?

O Yoga apresenta-nos uma solução radical para o problema e ensina-nos que nunca teremos sucesso nessa busca enquanto procurarmos extrair a felicidade do mundo, seja em objectos, experiência ou relações. O mundo tem uma natureza impermanente, tudo muda e portanto, ainda que consiga essa felicidade aqui e ali, da mesma forma que vem, vai. E invariavelmente, nos vemos no ponto de partida, não me sinto completo, falta alguma coisa para ser feliz, começo de novo a busca. O mundo é como uma cadeira de cartão numa loja de design. É bom para ser apreciado, mas não para nos apoiarmos. O Yoga mostra-nos que essa busca pela felicidade, pela percepção que nada falta, só pode terminar quando reconheço o que busco naquilo que está presente comigo a todo o tempo – eu, o sujeito presente em toda a acção e experiência. A plenitude não existe fora, a plenitude é o que sou, aqui e agora! O Yoga não promete, mas apenas revela o que está aí para ser compreendido, escondido sobre o manto da ignorância acerca da nossa verdadeira identidade. O Yoga é por isso uma tradição, uma cultura que aponta para a libertação do sofrimento, da percepção errada de que sou incompleto.

Esta tradição, um “fóssil vivo” como foi chamada, nasce na Índia, na cultura védica, é revelado nos Vedas e ali se encontram as raízes daquilo que desde então vem sendo desenvolvido. A época de composição dos Vedas é incerta, diz-se que terão 7000, 6000, 5000 anos, embora só mais tarde tenham sido reduzidos a escrito. Tradicionalmente falam-se em quatro tipos de Yoga: Karma Yoga, Raja Yoga (ou Upasana Yoga), Bhakti Yoga e Jñana Yoga.

Karma Yoga constitui-se de dois passos, a acção correcta e atitude correcta perante os resultados da acção. O Karma Yoga ensina-nos como agir no mundo de forma a criar o máximo de benefício para os demais seres vivos, ao invés de termos escolhas das nossas acções motivadas apenas pelo “umbigo”. Mais nos ensina a lidar com os frutos das nossas acções, a lidar com o momento presente, quer ele corresponda ou não às nossas preferências. O Yogí aprende a apreciar e reconhecer o momento presente como sendo o momento perfeito e essa aceitação vai criando um estado de equanimidade, de paz e serenidade. O Raja Yoga, sistematizado pelo sábio Patañjali nos conhecidos Yoga-Sútras, mas já conhecido nos Vedas com o nome de Upásana (meditação) Yoga. Naquela sistematização Patañjali enumera o sistema ético sobre o qual a prática do Yoga assenta e sem a qual a prática não produzirá o efeito pretendido, é traçado um caminho de conhecimento discriminativo e de meditação. O Yogí aprende a lidar consigo mesmo, os seus medos, obstáculos internos, as latências insconscientes que alimentam sem cessar o fluxo do pensamento e que ditam muito do que somos e fazemos. Nesse processo de exploração do universo interno tornamo-nos cientes do que somos.

O Bhakti Yoga desenvolve a relação entre o Yogí e a inteligência que permeia o Universo. Diz-se que o Bhakti Yoga é como um perfume que permeia todos os demais Yogas, e de facto, ele está firmemente presente em todos os demais. O Yogí reconhece que o universo não é um caos. Antes pelo contrário existe, uma Ordem infalível que subjaz a toda a manifestação e que se reconhece nas leis da Natureza como a lei da gravidade, o movimento das marés, a sucessão das estações do ano. O próprio facto da ciência ser possível revela-nos que existe uma Ordem no Universo passível de ser estudada. Essa relação com aquilo que está em todo lado, que intrinsecamente é o que também somos, caracteriza o Bhakti Yoga. Jñana Yoga é o corpo do ensinamento do Yoga, assente numa tradição e método de ensino, que consiste em ouvir o ensinamento, mantê-lo presente, eliminando dúvidas e contemplar a verdade desse ensinamento no dia-a-dia. Os demais Yogas preparam o praticante para que quando o ensinamento seja ouvido da boca de um Mestre, ele possa produzir o seu efeito e o Yogí se liberte da ignorância acerca da sua natureza, acerca de quem realmente é.

Tradicionalmente estes Yogas não eram apresentados como alternativos, mas sim como complementares e o praticante passaria por todos eles, com maior ou menor incidência em cada um consoante o período da sua vida.

Estas abordagens do Yoga foram-se desdobrando em muitas outras e nomes como Mantra Yoga, Kundalini Yoga, Tantra Yoga, Svara Yoga, Kriya Yoga e muitos outros tornaram-se famosos.

Hoje em dia, a maior parte do Yoga praticado em Portugal e no Ocidente cai na alçada do Hatha Yoga. O Hatha Yoga pode ser visto como um bebé na tradição do Yoga, uma vez que só se terá desenvolvido no sec. IX. Ao contrário dos demais Yogas Clássicos que se poderão dizer prontos, o Hatha Yoga continua a crescer e desenvolver-se. Se for experimentar uma aula de Yoga e se vir de cabeça para baixo, a tentar fazer aquilo a que se conhece vulgarmente como a ponte, a bandeira ou a pinça, o mais provável é estar numa aula de Hatha Yoga. O Hatha Yoga desenvolveu as posições com o corpo pelas quais o Yoga é hoje conhecido.

A verdade é que, no entanto, o Hatha Yoga não se reduz às posições com o corpo (ásanas). Longe disso, o Hatha estabelece-se como paralelo ao Raja Yoga. Poder-se-ia dizer que o Raja Yoga trabalha a mente com a força de vontade e o Hatha prevalece-se do prána (energia) para trabalhar a mente. Assim, o foco do Hatha é também, afinal, a meditação. Pelo caminho são definidos os princípios que norteiam a vida do praticante, o que fazer em sociedade e quando se está só; limpeza e purificação do corpo; força, flexibilidade e longevidade; manipulação da energia no corpo através da respiração e do movimento e permanência do corpo em determinadas posições associado a visualizações, e, finalmente, a meditação. O Hatha Yoga, compreendido no seu âmago, surge quase com um Yoga síntese de ensinamento, prática e meditação de que um bom exemplo é uma das suas escrituras, a Shiva Samhita. Existem vários estilos de Hatha Yoga. Dentre eles, alguns mais conhecidos por outros nomes como Iyengar Yoga, Ashtanga Vinyasa, Vinyoga, Shivananda entre outros. Os nomes surgem apenas para distinguir diferentes abordagens, às vezes remetem para um Mestre, outras vezes apontam para o foco na prática. Claro que alguns professores e escolas ensinam Hatha Yoga, mas não só, ensinam o Yoga como um todo. É verdade, também, que outras escolas procuram distanciar-se criando nomes que as distinguem de tudo o mais. São apenas estratégias de marketing que não alteram a verdade fundamental. Essa proliferação de nomes fantasia chega-nos em parte do Brasil, mas também dos E.U.A. onde as marcas de Yoga registadas se tornaram algo comum.

O Yoga é, em resumo, um mundo vasto e aliciante, abarcando visões aparentemente contraditórias, mas revelando sempre a plenitude do que já somos. Cabe a cada um descobrir esse mundo e perceber a verdade do ensinamento nele presente. Para a pergunta quem sou eu? O Yoga aponta a resposta e está aí para receber novos e velhos, homens e mulheres, atletas e sedentários, donas de casa e empresários. Na medida em que cada um dá ao Yoga, receberá certamente muito mais do que proporcionalmente. Assim, tem sido para mim e para aqueles que me servem de exemplo.

Texto de Miguel Homem. Professor de yoga em Portugal e editor do site http://www.dharmabindu.com/

Um comentário:

  1. Não sei se tem relação nenhuma com o texto que acabei de ler e me desculpem se sou leviana em minha colocação, mas ao ler o texto lembrei de uma citação do João Guimarães Rosa em que ele diz que a felicidade se encontra nas horinhas de descuido, trocando em miúdos, podemos pensar que está é naquilo que muitas vezes não observamos. Abraço, excelente texto.

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