domingo, 5 de dezembro de 2010

Desmistificando a devoção

Palavras como devoção ou devoto causam, na maioria das pessoas um certo embaraço, uma sensação de desconforto. Elas estão, geralmente, ligadas à uma crença dogmática e inquestionável, ou à existência de Deus. O devoto é aquele que acredita e que não questiona aquilo no que foi ensinado a acreditar. Porém, dentro do contexto cultural do Yoga, devoção é uma maneira (desapegada) de agir, e não simplesmente realizar ações ditas “devocionais”, como oferecer incenso, cantar mantras, etc.

Acontece que muitos de nós, praticantes de Yoga, também temos uma visão equivocada sobre o que seja devoção. Como hoje em dia tudo somente acreditamos naquilo que á tangível, a prática devocional dentro do Yoga tornou-se simplesmente aquela que é feita através de ações. Pensamos que devoção seja acender incenso, cantar mantras, fazer uma puja. Sim, todas são formas de devoção, mas devoção não é simplesmente isso.

Esta parte “mística” do Yoga chama-nos logo a atenção. Buscando soluções rápidas para as curas dos nossos males, nos jogamos de cabeça numa série de crenças irracionais que chamamos de “práticas devocionais”: enchemos a nossa casa de imagens hindus e incenso, e cantamos Hare Krishna.

Nós copiamos exemplos de nossos professores ou de imagens que vimos em alguns lugares e acabamos por repeti-las automaticamente sem nos dar ao trabalho de tentar compreender o significado das coisas. Digo que estas práticas são subjetivas, pois são crenças não verificáveis que pertencem a uma cultura estranha para nós. Lemos sobre rituais para o deus tal e para a deusa tal, e saímos copiando um comportamento que é interessante, mas que perde o significado se o tomarmos fora de contexto.

Assim como vemos nas primeiras práticas de ásanas, dentro do yoga, o que nos salta aos olhos são todas aquelas posturas extremamente difíceis, da mesma forma são os gestos rituais. Se não entendemos o conteúdo de cada um deles, tudo fica sem sentido.

Todos nós ficamos admirados quando assistimos a um ritual do fogo. Todo o desenvolvimento do ritual e seus pequenos e intrigantes detalhes. Tudo o que o sacerdote vai dizendo, seus movimentos e ações dentro do ritual. Mas se não entendemos do que se trata, estamos apenas repetindo certas coisas que ele pede para serem feitas ao longo do ritual.

É preciso não apenas repetir as palavras, mas entender o significado delas. Não é simplesmente jogar arroz no fogo, mas entender o que aquilo sugere.

A simples ação sem o conhecimento daquilo que está sendo feito não é válida.

A devoção na visão do Vedanta

A devoção na visão do Vedanta não depende apenas da ação, mas na capacidade de entendermos a causa de toda a criação e a capacidade de acomodarmos este conhecimento em nós mesmos. Antes de sairmos copiando nossas fontes de inspiração e ensino, deveríamos nos questionar se eles também sabem o que significa devoção e se são verdadeiros devotos.

Crenças e fatos

Ser um devoto não é simplesmente acreditar sem questionar. Nós entramos em contato com o conhecimento através de nossos professores. Esta é a primeira etapa, chamada sravanam. Nós ouvimos sobre aquilo que é o Criador e a Criação. Logo nos deparamos com uma questão que diferencia a visão ocidental da visão do vedanta que é a visão da dualidade e a da unidade respectivamente.

Na visão ocidental, existe um criador que está em algum lugar comandando toda a criação. A visão ocidental limita este criador a um ser especial, e portanto por limitar-se a um corpo que está em algum lugar, não poderia estar em tudo aquilo que foi criado.

Na visão ocidental, esta matéria que é a manifestação está separada do princípio criador.

À luz do vedanta 1+1=1, ou seja, criação e criador não estão separados. Aos olhos do vedanta o criador é aquele que permeia tudo aquilo que se manifesta e também tudo aquilo que não é manifestado.

Aquilo que se manifesta é a matéria. Ela é tudo aquilo que percebemos através de nossos sentidos e mente. Os elementos que compõem nosso corpo e toda a natureza (terra, água, fogo, ar e espaço). O principio desta manifestação é a inteligência que a criou a partir de si mesma (jagat karanam), a permeia e permite que ela se sustente, que ela seja consciente em si mesma. Ou seja, a causa é presente na matéria (criação, manifestação). Para que este conhecimento seja válido é preciso entender. Esta inteligência é representada por leis que mantém o universo do jeito que ele é (dharma). Isso não é mera especulação. A dúvida que nos afasta da compreensão desta inteligência é que na nossa cultura estamos acostumados a colocar este Ser inteligente em um lugar específico de onde ele tudo vê e governa.

Aí entra a segunda etapa da prática que é mananam, o questionamento.

Se eu existo como o indivíduo que sou, existe uma causa, um fato para isto. O fato é que para eu estar aqui, hoje, houve uma causa chamada meus antepassados. Isto é um fato, não é uma crença. Minha mãe pode ter me dito que se eu existo hoje é por causa dos meus tataravôs, lá trás.

Quando eu era criança, simplesmente acreditava, pois ainda não possuía os meios para questionar. Mas depois de crescido constatei este fato. Então o conhecimento é aquilo que me livra de uma especulação e me traz à realidade. Crença está sujeita a especulações. O fato, não.

Tudo bem, então já entendi porque fui capaz de desenvolver uma mente que questiona e entende a realidade da matéria. Mas como entender esta inteligência que permeia tudo isso? A resposta é nididhyásanam, a contemplação, a apreciação da minha essência. Tendo adquirido o conhecimento, agora é o momento de acomodá-lo, validá-lo para mim mesmo. E é ai que surge o verdadeiro devoto.

O devoto não precisa agir. Não precisa se fantasiar com mil japa malas, acender duzentos incensos ou ficar cantando mantras que nem um rádio o dia inteiro. O devoto é aquele que tem uma apreciação do Todo, uma compreensão do Todo e do que ele mesmo é, este Todo. O devoto é aquele quem executa as ações com o conhecimento do Todo. E não como um místico-hippie que especula e espera que em algum momento de seus “rituais cenográficos” surja uma “visão” do divino.

Por isso é tão interessante observarmos se nossos professores, mestres e gurus são verdadeiramente possuidores de conhecimento ou simplesmente imitadores de modelos que vemos em revistas e internet. Pois são eles que possuem a capacidade de despertar este devoto consciente que existe em cada um de nós. Podemos dizer, portanto, que devoção é conhecimento.

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