domingo, 19 de dezembro de 2010

O Yoga e a cegueira da humanidade


Depois que me tornei praticante de yoga, ao passar por qualquer tipo de experiência tento ver as coisas sob a ótica de alguém que tenta colocar em prática os valores deste estilo de vida.

Tive o privilégio de assistir a uma peça de teatro, na qual alguns dos valores éticos que regem, ou ao menos deveriam reger a conduta da humanidade são colocados em discussão.

Baseada na obra literária de José Saramago, a peça “Ensaio sobre a Cegueira” fala de um surto de “cegueira branca” que atinge um vilarejo e rapidamente se alastra, afetando a todos.

Admito que não sou um grande leitor de outras coisas, atualmente, que não estejam diretamente ligadas ao meu estudo de yoga e vedanta, mas sempre que surge a oportunidade de ampliar meus horizontes não desperdiço a oportunidade, pois sei que logo traço um paralelo destas obras de literatura com meus estudos de yoga. Noto, inclusive, que no fundo os questionamentos são sempre os mesmos, apenas com focos ou nomes diferentes. É aí que percebo o quanto podemos aplicar tudo isso ao nosso cotidiano.

Para isso acabei convidando minha amiga, também praticante de yoga e atriz do espetáculo em questão, para escrevermos este texto a quatro mãos, com o objetivo de enriquecer ambos os lados da discussão.

A Ética e os Valores

O primeiro passo de um aspirante a yogi deve ser compreender e absorver certos valores éticos de conduta. No astanga yoga veremos isso através dos yamas e niyamas, os primeiros dois degraus desta longa via.

Yamas e Niyamas são as disciplinas dos órgãos da ação e da percepção e são comuns ao mundo inteiro. Não são especificamente indianas, assim como não se ligam apenas ao yoga, afinal ser um aspirante a yogi deveria ser sinônimo de ser um aspirante a melhor ser humano.

Ao falar de valores e ética trataremos de conceitos e princípios que se aplicam não somente a nós mesmos, mas principalmente na relação com tudo e todos à nossa volta. Na Enciclopédia Wikipedia, da web, a palavra Ética é descrita da seguinte maneira:

“A palavra ética é originada do grego ethos, (modo de ser, caráter) através do latim mos (ou no plural mores) (costumes, de onde se derivou a palavra moral). Em Filosofia, Ética significa o que é bom para o indivíduo e para a sociedade e seu estudo contribui para estabelecer a natureza de deveres no relacionamento indivíduo - sociedade.”

Já moral, define-se como um conjunto de normas, princípios, preceitos, costumes e valores que norteiam o comportamento do indivíduo no seu grupo social. Por isso moral e ética não devem ser confundidos: enquanto a moral é normativa, a ética é teórica e busca explicar e justificar os costumes de uma determinada sociedade, bem como fornecer subsídios para a solução de seus dilemas mais comuns.

Deve-se deixar claro, porém, que etimologicamente ética e moral são expressões sinônimas, sendo a primeira de origem grega, enquanto a segunda é sua tradução para o latim.

Em Filosofia, o comportamento ético é aquele que é considerado bom e, sobre a bondade, os antigos diziam que: o que é bom para a leoa pode não ser bom à gazela, e o que é bom à gazela, fatalmente não será bom à leoa. Este é um dilema ético típico.

Desta forma, o objetivo de uma teoria da ética é determinar o que é bom tanto para o indivíduo como para a sociedade como um todo. Os filósofos antigos adotaram diversas posições na definição do que é bom, sobre como lidar com as prioridades em conflito dos indivíduos versus o todo, sobre a universalidade dos princípios éticos versus a "ética de situação". Nesta, o que está certo depende das circunstâncias e não de uma lei geral. Já a bondade é determinada pelos resultados da ação ou pelos meios através dos quais os resultados são alcançados.

Ao viver em sociedade o homem convive com outros homens e, portanto, cabe-lhe pensar e responder à seguinte pergunta: “Como devo agir perante os outros?”. Trata-se de uma pergunta fácil de ser formulada, mas difícil de ser respondida. Ora, esta é a questão central da Moral e da Ética, afinal a ética é o julgamento do caráter moral de uma determinada pessoa. Ser ético é não só fazer algo que te beneficie, mas também algo que, no mínimo, não prejudique o "outro".

A Ética e o Hatha Yoga

Um yogi logo começa a entrar em contato com estes princípios quando instruído por seu professor. E, ainda mais, quando entra em contato com suas próprias ferramentas de trabalho: o seu corpo e a sua mente.

Quando nos colocamos em uma prática de hatha yoga logo percebemos que nosso corpo se torna nosso instrumento para o aprendizado através da experiência. O que nos evidencia a importância de ter um corpo saudável e forte para praticar.

A princípio estas não seriam premissas para uma prática física de yoga mas, como veremos, um dos objetivos de ser um yogi é criar uma condição de extremo conforto para si mesmo, para que a prática seja proveitosa em todos os aspectos. Como já dizia B.K.S. Iyengar, “visto que o corpo é o local onde habita o Ser, ele deve ser tratado como o templo da alma”.

No tantrismo o corpo humano adquire importância jamais alcançada na história espiritual da Índia. A saúde, a força, o interesse por uma fisiologia assemelhada ao cosmos e implicitamente santificada são valores védicos e não pré-védicos. O tantrismo, porém, leva a conseqüências extremas a concepção de que a santidade só é realizável em um “corpo divino”.

Abolidos o pessimismo e o ascetismo upanishadicos e pós-upanishádicos, o corpo não é mais “fonte de sofrimento”, mas o instrumento mais seguro e completo que o Homem tem à disposição para “conquistar a morte”. E, visto ser possível obter a liberação a partir desta vida, o corpo deve ser conservado o maior tempo possível em perfeitas condições, precisamente para facilitar a meditação (Gheranda-samhita, I,8).

Nesta apreciação enfática do corpo humano e de suas possibilidades podem se distinguir pelo menos duas orientações distintas, mas convergentes:

1- a importância dada à experiência total da vida como parte integrante da sadhana (prática)

2- a vontade de dominar o corpo para transformá-lo em um “corpo divino” – posição sobretudo do hatha-yoga.

Tal domínio deve começar tendo como base um conhecimento preciso dos órgãos e suas funções, afinal “de que maneira os yogis que não conhecem seu corpo como [sendo] uma casa com uma coluna e nove portas, e presidida pelas cinco divindades tutelares, poderão atingir a perfeição?” (Goraksa sataka, 14).

O que se busca sempre é a perfeição e esta não é de ordem higiênica e nem atlética.

A palavra Hatha literalmente significa esforço violento, violência, e este nome surge por que a prática (visão tântrica) é vista de uma outra maneira. É necessário um determinado esforço para a transformação de um corpo ordinário em um corpo divino. É preciso Tapas, um desejo ardente de transformação. Este é o combustível que guiará o aspirante até seu objetivo.

Entretanto, além de Tapas, buscamos realizar também o valor de ahimsa, a não-violência. Ora, se hatha significa violento, então como aplicar ahimsa à prática? É preciso encontrar um ponto médio entre estes dois valores. Este ponto teria o nome de bom-senso, algo que surge da tua capacidade de fazer escolhas ou do seu livre-arbítrio.

Como em qualquer prática física, um praticante de hatha yoga está sujeito a lesões. Da mesma forma que se você caminhar sem atenção pela calçada pode sofrer um acidente, fazendo uma prática que requer um esforço físico você estará sujeito a se machucar. Se acontecem acidentes no yoga, a culpa não é do yoga, mas da agressividade ou da impaciência do praticante.

É comum ver centenas de pessoas medirem seu progresso na prática porque agora conseguem colocar as mãos no chão com os joelhos esticados. Outros se dão um prazo de tantos meses para colocar o pé atrás da cabeça ou ficar de cabeça para baixo.

E eu continuo me perguntando... Por quê? O que aconteceu comigo depois que fiz estas coisas? Garanto que continuo sendo a mesma pessoa, nada mudou. Quando me forcei, fui uma pessoa machucada e frustrada por não conseguir. No momento em que entendemos o “espírito da coisa”, aí sim podemos nos tornar pessoas mais felizes.

Não pratico yoga para me tornar um melhor contorcionista, nem para ficar com o corpo mais bonitinho. Novamente nos vemos aqui envoltos em uma prática repleta de valores. Como colocar tudo isso em cima do tapetinho? Como levar isto do tapetinho para a vida?

A que ponto chegamos

“Um valor é um valor para mim somente quando vejo o valor do valor como valioso para mim”. É assim que Swami Dayanandaji define um valor. Devemos primeiramente reconhecer a importância dos valores e somente então será possível colocá-los em prática na nossa vida.

Na história de Saramago fica evidente nossa capacidade de não enxergar nossas reais necessidades e assim acabamos por nos violentar e aos demais. Na peça, diante das condições em que se encontram, os personagens são obrigados a estabelecer novos códigos de conduta. Ao se perceberem cegos, famintos e sem as condições básicas de higiene, precisam descobrir uma nova maneira de se relacionar.

Ali estão todos cegos, são todos iguais. Se alguém era rico ou pobre antes desta cegueira, não faz a menor diferença, igualam-se todos nesta situação. Não podem mais ver se a pessoa que está ao lado é loira ou morena, bonita ou feia, homem, mulher ou qual o nome que ela tem. Saramago inclusive não dá nome aos personagens. São pessoas, apenas: o médico, o primeiro cego, a mulher de um, a mulher do outro.

Como é possível enxergar o outro se não o vejo? Somos obrigados a ultrapassar o mundo do concreto, do nominável. Numa situação como esta, o que importa é a necessidade de sobreviver e, diante disso, o que vale mais, um punhado de dinheiro ou um prato de comida?

Presos aos valores materiais, alguns cegos começam a exigir “peças de valor”, dinheiro, jóias em troca de comida. Depois, partem ainda a um extremo de violentar sexualmente as mulheres que ali se encontram.

Então me pergunto o que eles conseguem com isto, já que continuam confinados ali ainda cegos e presos em sua própria ignorância? Um cego que violentou uma mulher, com certeza não conquistou o amor desta e muito menos se realizou como ser humano tentando suprir sua carência de amor. E o dinheiro roubado, que função poderia ter naquela situação?

Cegados pelo nosso ego, às vezes nos violentamos demais (e aos outros) por objetivos que não trarão mudanças em nossas vidas. Como fazer para não passar por cima dos valores que realmente têm valor para nós?

Num momento em que a humanidade vive dias de insegurança e violência, em que acontecimentos movidos pelo ódio, pela intolerância e pela ambição se sucedem em várias partes do mundo, invadindo direta ou indiretamente nossas vidas, quais são os verdadeiros valores que devem nortear nossas ações? Em nosso cotidiano, quantas vezes nos deparamos com situações em que já não conseguimos distinguir o certo e o errado? Não conseguimos sequer definir onde está o Dharma.

Fazendo uma ligação com o que Patanjali diz nos Yoga Sutras:

Tada Drastuh Svarupe avasthanam, ou seja, aquele que vê (a si mesmo), se estabelece em sua própria natureza.

Neste momento somos colocados em pé de igualdade.

Assim como nos ensinamentos da Bhagavad Gita, somos todos um só. Nem mesmo um só “Deus”, mas somos somente “Deus” ou tudo o que existe é “Brahman”, se preferir. Mais uma vez, é apenas questão de dar uma nomenclatura àquilo que não tem nome. O que importa é o ser humano. Ou melhor, a sua essência, onde ele simplesmente é.

Ainda na Bhagavad Gita, Krishna diz a Arjuna que a partir do momento que se alcança o conhecimento, é impossível retornar à ilusão de um mundo apenas palpável, concreto e limitado. Expandimos os limites e ao enxergar, pagamos um preço por isso. O preço de quem olha e vê, o preço de quem sabe que a realidade é maior e, portanto, torna-se impossível satisfazer-se com o menor.

“Tomar consciência é atribuir um sentido, e isso implica desocultar o sem-sentido de certas coisas e evidenciar o sentido de outras, significa perceber-se como sujeito, com seus limites e muros e com suas janelas e portas por onde ver mais longe e sair para espaços mais abertos, significa negar e afirmar, fazendo escolhas, escolhendo entre valores, causas e companhias.” (José Saramago)

A partir do momento que eu enxergo o que me falta, me torno incapaz de permanecer no lugar onde estou. Torna-se necessário seguir adiante, romper o que tiver que ser rompido. A partir do momento que abro espaço para enxergar novas coisas, acaba o encanto de as coisas poderem ficar intactas. A realidade se abre, se mostra. O mundo amplia-se e vai além. A minha noção de “eu” torna-se outra.

Avidya (ignorância) – o maior dos obstáculos

Ao final da peça todos voltam a enxergar. A epidemia de cegueira acaba e todos os personagens simplesmente voltam a ver. Mas será? Será que ao findar esta cegueira de luz não voltamos todos para as trevas?! Será que ao recuperarmos a visão não voltamos imediata e automaticamente para o mundo das formas, do que já se conhece? Será que este foco de luz que Saramago coloca sobre a humanidade nos torna capaz de rever nossos conceitos?

É muito mais fácil seguir uma vida confortável, onde tudo já é conhecido e combinado, do que perceber o que é que falta, o que é que sobra, conseguir olhar para si e saber respeitar o que se precisa. Dá medo de sair de onde conhecemos, de enxergar o que não sabemos se estamos preparados para mudar. “O medo cega”, diz Saramago.

A cegueira branca desta história é uma cegueira que nos iguala, que nos faz enxergar quem somos. É como um foco de luz diante de todos os valores deturpados de uma humanidade que, ao ficar sem olhos, não sabe ver. Não sabe como agir, como ser, como viver. Ao tirar um de nossos principais canais de ligação com o mundo, Saramago nos obriga a estabelecer um outro contato com o mundo. Ao nos privar da visão, nos obriga a olhar com a alma.

“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, esta coisa é o que somos”.

Pois bem, Saramago está certo. Assim como Patanjali e Krishna, na Bhagavad Gita. Ao final – e ao princípio! - somos todos iguais, somos todos sem nome.

Nós simplesmente somos.

Texto de Marina Palha, atriz e praticante de yoga e Bruno Jones

3 comentários:

  1. Marina e Bruno,
    Belíssimo texto!!! Tenho Saramago como um dos meus autores preferidos e como praticante de yoga/estudante de Vedanta por muitas vezes fiz alguns paralelos entre as observações sempre certeira deste autor inigualável e o Yoga, esta forma de existir no mundo.
    Apesar de muito duro, o Ensaio sobre a Cegueira foi um dos livros mais espetaculares que já li e nos aponta para algo tb tão presente no Yoga, que é a noção de desapego, a importância de não nos identificarmos com os papéis que desempenhamos no nosso dia-a-dia e com os objetos com os quais nos relacionamos - somos todos iguais.
    E pra finalizar, só queria dizer que o texto de vcs só reforça a ideia de q apesar de poder se expressar de algumas formas diferentes, a Verdade é uma só!
    Obrigada por compartilhar este texto, q pra mim foi equivalente a uma boa meditação!
    Bruno, que bom que vc está descobrindo Saramago!!! "O Ensaio sobre a Lucidez" e "A Viagem do Elefante" tb são livros maravilhosos!!!
    ‎Namastê

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  2. ...e a cegueira do saramago é branca, como a luz que em excesso tb cega...p&l

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  3. ... assistindo Xingu percebi q seu lema é o mesmo do irmãos: 'o veneno e o antídoto' ao mesmo tempo. impossivel não transformar aquilo q tocamos, deixar a digital... Mas se não tocar, alguem vai fazer antes... Você é um Villas Boas do Yoga. como será q se diz 'namaste' lá no Xingu? (em off, obrigado.) p&l

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