sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Yoga Antigo = Upanishads ≠ Vedas ≠ Vedánta?



Outro dia veio parar às minhas mãos um livro que li em tempos idos. A curiosidade fez-me voltar a folheá-lo.

O livro contém uma cronologia histórica do Yoga. Segundo esta cronologia o Yoga antigo, pré-clássico, teria como fonte shruti, aquilo que foi revelado aos antigos sábios védicos, os rishis. A literatura base atribuída a este Yoga antigo (pré-clássico) são as Upanishads. E, na opinião do Autor deste livro, um Yoga antigo assente no Shruti e nas Upanishads é a antítese do Vedánta, e absolutamente incompatível com este.

Mas afinal, o que são as Upanishads? Segundo o famoso dicionário Sânscrito – Inglês de Sir Monier Williams[1] (pag. 201, coluna à esq.), upanishad significa aproximar-se, sentar-se aos pés de alguém para ouvir as suas palavras. Ou seja, sentar-se aos pés do mestre. Ali diz-se ainda que o seu objectivo é a revelação do significado secreto dos Vedas que são vistos como a fonte do Sámkhya e Vedánta.

No entanto, segundo esta cronologia, o Vedánta estaria associado apenas ao Yoga contemporâneo, o que, como já se começou a demonstrar, não corresponde à realidade.

Vejamos agora o que é shruti. Segundo MW (pag. 1101, coluna à direita), shruti é aquilo que foi ouvido ou comunicado desde o início, conhecimento sagrado transmitido de geração em geração pelos brahmans, os Vedas.

Os Vedas são os tratados onde assenta a tradição védica, conhecida como sanatana dharma, o dharma eterno (o que normalmente se identifica com o Hinduísmo). Os Vedas estão divididos em duas grandes partes: o karma kánda e o jñana kánda. A primeira parte, karma kánda, lida com a acção (karma) prescrita para os diferentes objectivos humanos (purushartha) e a ética. Esta é a parte mais extensa. A segunda parte dos Vedas, jñana kánda, é a menor e versa sobre jñanam, o auto-conhecimento. É na parte final dos Vedas que encontramos as primeiras Upanishads, e é a esta parte dos Vedas que o yogí mais se dedica. E quem se debruça sobre o estudo da parte final dos Vedas? O Vedánta.

Vedánta significa literalmente a parte final (anta) dos Vedas (veda + anta). Não se fiem em mim :) Consultem o amigo MW (pag. 1017, coluna à esquerda).

A verdade é que quem quer adquirir o conhecimento das Upanishads, do Yoga antigo, pré-clássico, ouve, estuda, reflecte e medita Vedánta, que é o mesmo que dizer Jñána Yoga. Isto não significa que apenas o Jñana Yoga seja relevante. Todos os yogas tradicionais são importantes e obrigatórios para todos os praticantes. Não se pode excluir nenhum, ou escolher um em detrimento do outro se se quiser, em segurança e confortavelmente, chegar ao objectivo. E todo o yogi, mais tarde ou mais cedo, se cruza com esta verdade ao longo do seu caminho.

Conclui-se, assim, que o Autor da cronologia lavra em confusão ao qualificar o Vedánta como “grave deformação do Yoga”. Por um lado, desenvolve uma teoria de incompatibilidade entre os diferentes darshanas do sanatana dharma (o dharma védico) que vai contra toda a tradição de ensino indiana. Os darshanas não são, nem poderiam ser, incompatíveis porque se debruçam sobre aspectos diferentes do Universo. Os darshanas são complementares! E sobre isso existe abundante literatura.

Por outro lado, o Vedánta é qualificado negativamente de espiritualista, em contraposição à linha seguida pelo Autor, qualificada como naturalista. Ora, eu aprendi e aprendo Vedánta com o Swami Dayananda. O Swami Dayananda aprendeu com seu mestre e asssim segue até Shankaracharya[2] e antes dele. A importância de um mestre vivo de quem o discípulo possa receber o conhecimento é tão importante na tradição que o mantra de invocação da paz do Rg Veda termina assim:

Que Brahman me proteja. Que proteja o professor.
Que Brahman me proteja. Que proteja o professor.
Que haja paz, paz, paz.

O estranho é que nós, espiritualistas, aprendemos com pessoas de carne e osso e o Autor naturalista aprendeu com um mestre, em sonhos. Ao que parece não havia ninguém vivo com competência para o ensinar… O tal mestre aparecia ao Autor em sonhos e a alguns motoristas de táxi :).

Curioso é, ainda, que o Autor afirme que o Yoga que criou é o melhor e mais completo Yoga do mundo. Este yoga de marca registada é uma das diversas modalidades de Hatha Yoga que hoje existem.

Se entrar numa sala de aula e o Professor mandar fazer shirshásana (ficar de cabeça para baixo), paschimottanásana (flexão sentada com as pernas esticadas) ou qualquer posição semelhante que não seja sentada, já sabe que está a fazer Hatha Yoga. Existem hoje várias modalidades de Hatha Yoga. Algumas adoptaram os nomes de mestres e outras não, mas em ambos os casos um Professor competente e honesto irá confirmar que aquela é uma modalidade de Hatha Yoga. Mas não é este o caso do nosso Autor que também aqui se lança numa guerra de distinção entre o seu método e o Hatha Yoga. E entre essas importantes diferenças ficamos a saber que o seu método tem como público alvo “intelectuais, artistas, escritores, cientistas, jornalistas, empresários, executivos, profissionais liberais, universitários e desportistas, na maioria adultos jovens entre 16 e 50 anos, na sua maioria homens e com nível cultural superior e médio”. Já o Hatha Yoga seria praticado por “alternativos, espiritualistas, idosos, enfermos, nervosos, gestantes e senhoras donas de casa, na sua maioria acima dos 50 anos, mulheres e com nível cultural médio e básico”.

O preconceito salta destas palavras do Autor, sem necessidade de se fazer mais comentários.

Aos sem casta, pobres, idosos, mulheres e iletrados, em meu nome e de todos os professores sérios convido-vos a praticarem, estudarem e assumirem a tradição cultural do Yoga. Ela também é para vós!

A verdade, satya, está no início da aprendizagem do Yoga. Satya não significa apenas falar a verdade, mas também não deixar a não verdade impune. Hoje, este é o meu satyavrata, o meu voto de verdade com muita compaixão.

No Yoga, como em tudo na vida, é preciso ter um olhar crítico. Às vezes permanecemos presos a determinadas concepções ou relações, porque julgamos que são o melhor que podemos encontrar e que não existem alternativas. Elas existem sempre! E se existiram para mim, existirão certamente para outros.

Deixo-vos este pensamento do Swami Chinmayananda:

“Vá devagar. Não há pressa. Não acredite cegamente. Questione cada declaração. O seu pensamento independente e entendimento são de importância fundamental. Só então o nosso conhecimento pode revelar quem somos.”

Om asato má sadgamaya / tamaso má jyotirgamaya /
mrtyormá amrtam gamaya

Om shántih shántih shántih

“Que eu seja levado (pelo conhecimento) do irreal para o real; da escuridão (da ignorância) para a luz (do conhecimento); da morte (sentido de limitação) para a imortalidade (a libertação)
Que haja paz, paz, paz.”

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[1] Identificado de agora em diante como MW.

[2] Esclareça-se que Adi Shanakarachárya não foi o criador do Vedánta, mas tão só um reformador do Dharma Hindu.

Texto de Miguel Homem, professor de Yoga em Portugal e editor do site http://www.dharmabindu.com/

2 comentários:

  1. Obrigado Miguel por colaborar trazendo o estudo mais perto da prática. Yoga é questionamento também. Om

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  2. Muito obrigado por este iluminado texto. Sou um iniciante de iniciante, tenho lido de tudo. Por vezes, dependendo de quem escreveu a material há conflitos e por vezes não. Mas, pelo pouco que sei, Yoga também é união.

    Namastê!

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