Este texto não noticia que o Yoga esteja sob ataque de forças ocultas, nem fala sobre um complô ou propõe uma teoria conspiratória contra ele. Não obstante, lista uma série de acontecimentos, alguns recentes e outros nem tanto, que revelam a forma em que certas lideranças religiosas e políticas orientam as pessoas sob sua égide a se relacionar com esta escola de vida que é o Yoga. Possivelmente, partes deste texto poderão produzir desconforto em algumas pessoas. Respeitosamente, pedimos desculpas por isso, mas achamos que seria mais construtivo falar do que calar perante essas questões, para informação e reflexão dos nossos queridos leitores.
Cristãos
O convívio dos cristãos com o Yoga tem sido bastante ambíguo ao longo da história. Sabemos que padres católicos e pastores protestantes, em missão na terra do Yoga, foram seduzidos pelos belos e práticos ensinamentos que ele apresenta. O maior e mais conhecido exemplo de tentativa de integrar o cristianismo com a espiritualidade do Yoga foi o padre jesuíta indiano Anthony de Mello (1931-1987), autor de belíssimos poemas que respiram Yoga. Um ano após a morte deste padre-yogi, sua obra acabou previsivelmente sofrendo severa censura do então Cardeal Joseph Ratzinger.
Certamente, o amigo leitor conhece bons católicos e até mesmo algum padre ou freira que pratica, estuda, ensina ou recomenda o Yoga. Pessoalmente, já ministrei retiros num mosteiro da Ordem dos Marianos nas montanhas de Portugal e num colégio jesuíta em Florianópolis e sempre me senti muito bem-vindo nesses ambientes. No varejo do dia-a-dia, os casos de respeito mútuo e boa convivência entre a religião católica e o Yoga tem sido mais frequentes que a censura e a proibição.
Não obstante, o Yoga tem, eventualmente, sofrido ataques por parte dos missionários católicos desde a chegada dos primeiros jesuítas à Índia, no início do século XVI. Nos dias de hoje, quando a liderança da nação católica se polariza ao extremo que estamos testemunhando, a tolerância e o bom convívio simplesmente desaparecem, diante da urgência de manter o rebanho dos fiéis devidamente sob controle.
Nessa linha, não nos surpreende comprovar que a Igreja desaconselha veementemente aos católicos a prática do Yoga e de outras formas da “espiritualidade oriental”. Embora esta atitude esteja totalmente alinhada com as demais decisões que ela tem tomado noutros assuntos, o povo católico só tem a lamentar diante dessa manifestação de intransigência. Desta forma, a Igreja aprofunda desnecessariamente o abismo que já a separava da imensa maioria dos fiéis. O segmento dos esclarecidos dentro da nação católica certamente irá continuar suas práticas a despeito da proibição, que é claramente mais uma tentativa de interferir no livre pensar dos fiéis, quem sabe, com o intuito de melhor manipulá-los.
Como editor de um website cujo conteúdo está centrado nos ensinamentos e práticas do Yoga, recebo com alguma freqüência mensagens agressivas de evangélicos intolerantes que, simplesmente, exigem que tire do ar esses conteúdos “satânicos e blasfemos”, que pare de promover “rituais demoníacos” e que aceite Jesus como meu salvador. Chama a atenção o tom peremptório dessas exigências. Estes evangélicos não convidam ao diálogo nem estão dispostos a acatar nada que não seja um “sim, senhor”. Obviamente, essas mensagens ficam sem resposta.
Muçulmanos
A proibição da Igreja e as outras tentativas de censura acima descritas acontecem dentro de um contexto maior em que, recentemente (novembro de 2008), o Yoga sofreu uma condenação similar da parte de líderes fundamentalistas muçulmanos na Malásia. Curiosamente, o novo papa parece estar imitando a ala extremista do Islame. A diferença é que esses militantes radicais são uma barulhenta, mas pequena minoria da nação islâmica, enquanto que o sumo pontífice fala como a autoridade máxima e o guia espiritual de todos os católicos.
Diferentemente da advertência da Congregação para a Doutrina da Fé, a fatwa emitida pelos muftis não foi apenas uma admoestação por escrito, já que foi implementada uma verdadeira caça às bruxas nas escolas de Yoga de Kuala Lumpur, que foram fechadas, e muitos praticantes acabaram por se fantasiar de dançarinos de balé para poderem fazer seus mantras e ásanas em paz. Essa decisão dos fundamentalistas malaios está inserida numa já tradicional e conhecida desconfiança que as formas mais radicais do islamismo nutrem por tudo o que não seja a interpretação literal do Alcorão. Até aqui, nada novo sob o Sol.
“Viva e deixe viver” é uma frase que todos ouvimos em algum momento. Uma variação dela, “Viva e deixe morrer”, ficou popular algumas décadas atrás num sucesso de Paul McCartney que servia de trilha sonora para um filme de James Bond. Aqui em Punta de Lobos, uma localidade no sul do Chile onde estou escrevendo este texto, encontrei mais uma variação numa placa fixada no alto de uma falésia: “Surfe e deixe surfar. Respeite os demais.”
A frase original é a síntese da política do bom convívio que se estabeleceu naturalmente entre os soldados dos exércitos inglês e alemão nas trincheiras da I Guerra Mundial. Os soldados pensavam assim: “se ele não atirar, eu não atiro; ele vive, eu vivo”. Então, de costas para seus respectivos comandos, os soldados disparavam para o alto quando recebiam ordem de atacar, já que esse acordo tácito de não-agressão era mais importante que as ordens recebidas dos superiores. Viva e deixe viver: poderia ser uma boa ideia aplicarmos esse mesmo princípio ao convívio entre o Yoga e as religiões que se sentem incomodadas ou ameaçadas por ele. Se serve para guerreiros e surfistas, deveria servir para yogis e religiosos também.
Comunistas
Estas situações, por sua vez, me lembram da primeira palestra que assisti com Indra Devi, uma inesquecível professora russa que tive o privilégio de conhecer mais de 25 anos atrás. Naquela ocasião, anos antes da queda da Cortina de Ferro e do Muro de Berlim, ela contou, num congresso no Uruguai, que o Yoga era proibido na então União Soviética, e que os praticantes eram perseguidos e presos pelo regime comunista. Indra Devi nos lembrou naquela ocasião de como era bom poder estar juntos, praticando e aprendendo Yoga num país livre (naquele momento, a ditadura militar tinha acabado de cair na minha terra natal).
Cabe lembrar que a perseguição sofrida pelos yogis dos países do ex-bloco soviético acontecia ao mesmo tempo em que eram proibidas todas as formas de culto religioso e livre pensar. Ditaduras, todos sabemos, não apreciam nada que possa contestar ou colocar em xeque o modelo de governo. Tampouco apreciam o estado de direito, a imprensa livre, a liberdade de expressão, a liberdade de ir e vir ou de associar-se. Nessa ordem de coisas, a proibição do Yoga não surpreende tanto, embora seja chocante e inconcebível para cidadãos de um país livre.
Cresci durante os duros anos da ditadura militar uruguaia, sem nenhuma liberdade cívica. Não que a ditadura uruguaia fosse de cunho comunista, mas na prática, pouco muda a vida sob uma ditadura de esquerda ou de direita. Até mesmo andar na rua era proibido em alguns horários. Meu pai e minha mãe, respectivamente professores de filosofia e literatura, perderam seus empregos no ensino público simplesmente por pensarem diferentemente dos donos do poder. A nossa família sofreu muito, com vários dos seus membros e amigos presos e perseguidos, desemprego e extrema pobreza. Faltava-nos o básico, como roupas e materiais de estudo e, em algumas raras ocasiões, até comida. Esse tipo de opressão é algo incompreensível para quem não a sofreu.
Pelo que sei, a influência da ditadura militar no Brasil foi bem menor na questão das liberdades individuais e no cotidiano da população. Quem não sentiu na pele essa falta de liberdade, dificilmente poderá dar valor às coisas mais simples, como tomar a decisão de fazer uma viagem ou simplesmente manter a integridade física. Um dos motivos que me levou a abandonar a minha terra natal foi constatar que, mesmo depois da ditadura, as pessoas ainda carregavam essa falta de liberdade em suas mentes. Qualquer ditadura é ruim para um praticante de Yoga, já que este busca, intrinsecamente, a liberdade, que é justamente o que aquela nega.
Democracia: a salvação da lavoura
Assim, cristãos raivosos, muçulmanos fundamentalistas e comunistas inflexíveis têm tentado por diversos meios impedir que o Yoga chegue às pessoas. Diante dessa situação, os praticantes das democracias não podemos menos que suspirar aliviados por não vivermos num regime ditatorial, nem sob a influência emocional ou psíquica de líderes religiosos opressivos e intolerantes.
Nesse sentido, muitas vezes tomamos com bastante leviandade o fato de praticar Yoga em paz e livremente. Se formos pensar que no passado os praticantes de Yoga tântrico, do qual o Hatha nasceu, eram perseguidos e condenados à morte por esquartejamento entre dois elefantes, ou que neste preciso momento seres humanos iguais a nós possam estar sendo perseguidos pela justiça ou condenados por seus guias espirituais pela “heresia” ou pelo crime de praticar Yoga, devemos realmente dar graças aos céus pelo privilégio de não sermos importunados nas nossas práticas e estudos.
Nesse sentido, creio que as religiões monoteístas, com a honrosa exceção do judaísmo, que sempre estimulou o diálogo inter-religioso, ainda têm um longo caminho pela frente no que diz respeito à tolerância e convívio com o que é diferente. No caso, a desconfiança do cristão ou do muçulmano em relação ao Yoga é oriunda da incapacidade de compreendê-lo, o que conduz à dificuldade de aceitá-lo.
Mais uma teoria conspiratória?
Alguns líderes católicos e evangélicos estão convencidos de que nós, professores e praticantes de Yoga, estamos promovendo uma espécie de complô mundial para acabar com o cristianismo através de uma conversão disfarçada das pessoas pelas técnicas yogikas. Eles afirmam que, por exemplo, quando fazemos a saudação ao Sol, estamos obrigando os praticantes a reverenciar inadvertidamente algum deus hindu, ou que quando convidamos alguém para fazer um mantra, esse mantra funciona como uma espécie de lavagem cerebral que irá fazer com que o cristão rejeite Jesus como o único salvador e queira se converter ao budismo ou outra religião exótica. A paranóia de ser convertido, no fundo, pode ser expressão da necessidade de converter os demais para reafirmar suas próprias convicções. Isso, por sua vez, pode ser uma manifestação de insegurança em relação ao próprio dogma.
Na mesma linha de irraciocínio, ensinam que nossas meditações são formas de adoração satânica, que kundalini é um demônio que precisa ser exorcizado e que “a mente vazia é oficina do diabo”. Também, soube recentemente que alguns pastores explicam que o sexo tântrico seja o objetivo final do Yoga. Considerando a obsessão que a nossa sociedade tem pelo sexo, essa abordagem deve despertar mais interesse que rejeição nos fregueses, acredito. O tiro, neste caso, pode sair pela culatra. Sorte deles, a vertente do Tantra como “terapia” sexual não ser tão popular assim.
Por outro lado, sabemos que os movimentos missionários salvíficos têm muitas vezes como características a intolerância e o preconceito, como ilustra o discurso proferido pelo Cardeal Pio, em Chartres, em 1841:
Nosso século clama: “tolerância, tolerância”. Tem-se como certo que um padre deve ser tolerante, que a religião deve ser tolerante. Meus irmãos, não há nada que valha mais que a franqueza, e eu aqui estou para vos dizer, sem disfarce, que no mundo inteiro só existe uma sociedade que possui a verdade e que esta sociedade deve ser necessariamente intolerante.
Obviamente, o Cardeal Pio refere-se à sociedade católica. Pouca coisa parece ter mudado na maneira com que a Igreja conduz seus negócios no ultimo século e meio, desde que o citado cardeal pronunciou estas palavras. Portanto, se a única forma de espiritualidade que presta é o catolicismo, o Yoga não pode senão ser uma excrescência incômoda, que é necessário apagar do mapa. Talvez os muçulmanos pensem de maneira similar. E os antigos dirigentes do politburo.
Tolerância e convívio
O hinduísmo tem, historicamente, uma exemplar tradição de tolerância. A Índia recebeu, ao longo dos séculos, populações inteiras de pessoas que eram perseguidas em suas terras de origem por causa da religião, como foi o caso dos cristãos assírio-caldeus, jacobitas e nestorianos que se estabeleceram no sul da Índia a partir dos primeiros séculos desta era, o da comunidade dos parsis, que migraram desde o Irã para Maharashtra há mais de 1500 anos, e o mais recente caso dos budistas tibetanos que se mudaram para o norte da Índia após a invasão do Tibete pelos chineses, em 1959. A todas e cada uma dessas populações, foi dado o direito de estabelecer-se, trabalhar e conviver lado a lado, pacifica e harmoniosamente, com a maioria da população hindu.
Note-se que estamos falando aqui sobre convivência entre comunidades de distintas religiões, etnias, línguas e culturas e que o Yoga, como todos bem sabemos, dista muito de ser um credo religioso. É possível distinguir um budista de um hindu por certos sinais externos. Porém, não é possível identificar um yogi por algum desses sinais. O praticante de Yoga pode ser tanto budista como hindu, muçulmano ou cristão. Aí jaz o grande paradoxo das situações descritas no início deste texto: sem ser uma religião, o Yoga sofre perseguição por parte de algumas religiões; sem ser um sistema político, regimes ditatoriais se sentem ameaçados por ele ao ponto de proibi-lo e encarcerar seus praticantes.
Talvez um dos motivos da desconfiança que o Yoga desperta nesses setores do establishment seja justamente a quase impossibilidade de catalogá-lo, de enquadrá-lo dentro de um esquema familiar para quem pretende julgá-lo desde dentro de um dogma fechado ou de um sistema totalitário.
O yogi na sociedade
Não existe um gueto de praticantes de Yoga em nenhuma sociedade, como houve guetos judeus nos países ocupados pelos nazistas durante a Grande Guerra, ou como há guetos de hindus no Paquistão atualmente. O praticante pertence a uma família, está inserido na sociedade em que escolheu viver e exerce suas funções convivendo pacificamente com os demais. De maneira alguma, poderíamos considerar o praticante uma espécie de outsider, desajustado, pária social, ou coisa similar.
Não há, afora as escolas de Yoga, ambientes separados onde os praticantes convivam apenas entre eles, isolados da sociedade. Tampouco há um perfil social, econômico ou cultural definido do praticante de Yoga. Não obstante, o yogi é visto algumas vezes como um avis rara, como alguém esquisito ou alienado e, portanto, potencial alvo de discriminação ou escárnio. Entretanto, noto que a maioria de nós convive tranquilamente com os preconceitos que algumas pessoas nutrem em relação à gente.
Essa eventual fricção se percebe de maneira mais clara em relação à dieta vegetariana, já que não é raro ver pessoas tensas perante um yogi vegetariano, que descarregam essa tensão muitas vezes na forma de agressividade ou comentários irônicos sobre a opção de não comer carnes. Por outro lado, vemos também praticantes que desenvolvem uma atitude intolerante perante aqueles que não compactuam com sua opção alimentar, escolhas ou modo de vida. Porém, essas questões são muito pequenas, defronte o pano de fundo acima exposto.
Há mais alguma característica que possa definir um yogi nos tempos atuais? O praticante não tem classe social determinada. Ou, pelo menos, não deveria ter. Um dos motivos de satisfação que tenho como professor é ver que na pequena comunidade onde moro e ensino, a sala de práticas é o ponto de encontro de todas as camadas sociais: o pescador, o comerciante, o artesão, o engenheiro, o carteiro e o estudante praticam lado a lado, e há muita harmonia nos relacionamentos. E, afora as Testemunhas de Jeová que já tentaram me dissuadir de ensinar no município, percebo que a sociedade como um todo aceita perfeitamente o fato de pessoas praticarem Yoga, independentemente de posição social, idade ou gênero.
Conclusões
É provável que tanto o defunto politburo soviético quanto o papa e os imames islâmicos tenham resolvido proibir e perseguir o Yoga porque eles sabem positivamente que esta escola de vida tem como objetivo libertar o ser humano das correntes da ignorância. É possível também que saibam que o propósito maior do Yoga é moksha, a liberdade, e que na medida em que as pessoas se libertarem, elas se tornam difíceis de serem manipuladas, questionadoras, livre-pensantes e independentes.
É possível que a existência de seres humanos assim não seja do interesse de instituições como as ditaduras ou de líderes dogmáticos. Felizmente, há lugar para esse tipo de gente nas sociedades abertas e democráticas. Felizmente, os praticantes de Yoga podemos viver pacificamente em alguns países, fazendo nossa contribuição para uma sociedade melhor.
Não obstante, creio que há algo de positivo nessas proibições, já que as pessoas de bom-senso e inteligência não poderão deixar de perceber o ridículo dessas patéticas tentativas de apagar o Yoga da memória das pessoas ou tirá-lo do seu cotidiano. Digo patéticas tentativas, pois todos sabemos do melancólico destino que tiveram os regimes comunistas, assim como vislumbramos o possível final dessas religiões que sofrem presentemente um processo de franca decadência e retraimento nas sociedades onde a liberdade e a educação prevelecem.
Enquanto isso, o Yoga segue muito bem das pernas, obrigado. Os cães latem, a caravana passa. Pelo menos, nas democracias do planeta. Felizmente, lá se foram a Idade Média, a Santa Inquisição, o obscurantismo e o Muro de Berlim. Pense então no privilégio de viver num país livre e poder trilhar o caminho da prática e do autoconhecimento, se você costuma se definir como yogi. E escolha bem seu candidato nas próximas eleições para que os fantasmas do autoritarismo e a corrupção se afastem do nosso querido país já que isso também fere a nossa dignidade, como humanos e como praticantes de Yoga. Namaste!
Texto de Pedro Kupfer
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