O Tattvabodhaḥ de Śri Śaṅkarāchārya é uma obra bastante interessante para todos aqueles que desejam aprofundar seus estudos em Vedānta. O texto é bem simples, na forma de um diálogo entre um professor e seu discípulo que busca o entendimento sobre si próprio. O grande ganho que temos ao estudá-lo é a familiarização que passamos a ter com palavras carregadas de significados que serão posteriormente vistas em praticamente todas as Upaniṣads.
Quando estudamos estas escrituras em sânscrito, podemos perder partes ou até mesmo toda uma idéia que está sendo passada através de suas palavras. Por isso, este texto nos oferece uma chance de compreendermos determinadas palavras que retêm melhor os seus significados quando mantidas em seu original, do que quando traduzidas. O Tattvabodhaḥ começa a ficar interessante quando o aluno pergunta ao seu mestre sobre a natureza de ātmā.
Ātmā kaḥ? (O que é o ātmā?)
Ātmā, dentro da visão de Advaita Vedānta, não pode ser qualificado pois não possui um nome ou forma definida, não tem início nem fim. Portanto, neste instante, a mente fica sem recursos para compreender a natureza de ātmā. Ela só funciona através de nomes e formas.
E quando estas não estão disponíveis, fica impossível a sua tarefa, que é identificar tudo aquilo que ela se relaciona como objeto. Neste momento, o mestre resolve elucidar a questão se aproximando dela de outra forma: mostrando tudo aquilo que ātmā não é.
As três formas de conhecimento, segundo o Advaita Vedānta:
Segundo o Advaita Vedānta, existem três maneiras de se obter conhecimento. A primeira se chama pratyakṣa: que é o conhecimento direto. Quando estamos na presença do objeto. Parokṣa é quando alguém descreve o objeto. Portanto um conhecimento indireto e bastante impreciso. E, por último, aparokṣa é aquilo que se revela naturalmente. Sem a necessidade de um objeto ou uma descrição.
Digo aqui, sem objeto, porque ātmā não é um objeto a ser testemunhado, pois não possui atributos. Ātmā é o sujeito que tudo percebe e que se mantém livre de qualquer envolvimento, de qualquer modificação.
Portanto, o mestre e seu discípulo seguem em sua conversa, discorrendo sobre esta natureza do ātmā, eliminando um a um, cada objeto que é sustentado por ele. A princípio, o mestre descreve o indivíduo como constando de dezessete partes:
- Cinco órgãos de ação
- Cinco órgãos de percepção
- Cinco prāṇas
- Mente
- Intelecto
Kāraṇaśarīram kim? (O que é o kāraṇaśarīra?)
O texto nos leva daquilo que há de mais denso (sthūla e sūkṣmaśarīra), até o entendimento do mais sutil (kāraṇaśarīra). Este que é o mais sutil é chamado de kāraṇaśarīra. Esta é a parte mais difícil de se compreender e onde mais há confusão, entre nós, estudantes de Yoga e Vedānta. Grosso modo, poderíamos dizer que este kāraṇaśarīra, ou corpo causal, é uma “bagagem de karma” de cada indivíduo. Carregada com nossas vāsanas e saṁskaras.
Estas vāsanās e saṁskāras, são os nossos desejos. Estes desejos são a causa do nosso retorno à forma de indivíduos. Estes desejos que têm como base a ignorância em relação à nossa natureza que já é plena em si mesma.
Desta forma o mestre descreve o kāraṇaśarīra da seguinte forma: “O corpo causal não possui uma forma (pois é o mais sutil de todos). Existe por causa da ignorância que não tem um início (A ignorância é uma experiência que não tem um início, mas que acaba quando o conhecimento sobre um determinado objeto ou assunto se estabelece. Mesmo que não conheçamos o objeto em questão. Portanto como nunca havíamos ouvido falar do objeto, sempre o ignoramos, mas logo que alguém nos apresenta este objeto e nos explica o que é, a ignorância se vai.).
É a causa dos outros dois corpos, que se estabelecem para poderem realizar os desejos do indivíduo. A natureza deste corpo é a própria ignorância em relação a si mesmo (o ātmā), basicamente porque não há o discernimento entre sujeito e objeto.”
Ānandamayaḥ kaḥ? (O que é o ānandamayakośa?)
Tendo compreendido aquilo que é o corpo causal, ainda há algo mais sutil a ser conhecido, e que está relacionado a este corpo, que é o ānandamayakośa. Para entendermos melhor o que é este ānandamayakośa, vamos desmembrar esta palavra em três partes:
A primeira a ser analisada será a palavra kośa. Kośa significa literalmente bainha. Como a bainha de uma espada. Ou seja, algo que ao cobrir um objeto, assume a forma do mesmo. Mas como ātmā não possui uma forma, esta definição fica um pouco perdida aqui. Já que ātmā não pode ser coberto por nada. Mas digamos que seja algo que pode me fazer pensar que estou “experimentando” ātmā. Vamos entender isso logo à frente quando falarmos sobre a palavra ānanda.
Em segundo vamos analisar a palavra maya. Aqui temos que ter o cuidado para não confundirmos com māyā, que significa “aquilo que é impossível de acontecer”. Maya significa a “transformação de”, ou “nada além de”.
Fica bem lógico quando pensamos no annamayakośa. E podemos traduzí-lo como o corpo que resulta na transformação dos alimentos (anna). O nosso corpo físico. E, em relação à terceira palavra que é ānanda, fica bem traduzido como “nada além de plenitude”.
Em cima disto, o professor discorre: “Este ānandamayakośa é aquele que é sustentado pela ignorância (em relação a mim mesmo), que é a razão pela qual o corpo causal existe. Consiste de sattva impuro (este sattva impuro, nos deixa intrigados, pois sempre tivemos a idéia de que sattva é uma condição indispensável para nossas mentes estarem preparadas para o autoconhecimento.
Mas sattva aqui, aponta para uma experiência de plenitude, e não para a plenitude em si. E experiências não representam aquilo que sou, pois elas vêm e vão). Estas experiências estão sustentadas pelo prazer, listadas pelo professor como priya, moda e pramoda.
Quase sempre, ouvimos falar sobre ānandamayakośa como uma epécie de “corpo de plenitude”, até porque estamos acostumados a relacionar esta palavra em sânscrito com plenitude em português, que é, realmente, um dos seus significados. Mas aqui não. Ānandamayakośa significa, de fato, a causa mais sutil da ignorância.
Desta forma, o professor, encerra esta explicação com um lindo verso, que diz: “Assim como um bracelete, um brinco, uma casa, etc; são reconhecidos como “meus”, e portanto, diferentes de Mim. Assim também é aquilo que é composto pelos cinco kośas. Reconhecidos como “meus”: meu corpo, meus sentidos, minha mente, meu intelecto e minha ignorância. Todos eles não sou Eu, o ātmā.”