quinta-feira, 13 de maio de 2010

Karma Sannyasa - Bhagavad Gita - Cap IV



Sribhagavanuvaca:

Imam vivasvate yoga proktavanahamavyayam.
Vivasvanmanave praha manu iksvakavebravit (1)

Eu sou aquele quem ensinou este Yoga imutavel à Visvavat (Sol).
Visvavat ensinou a Manu (primeiro homem), e Manu a Iksvaku (primeiro rei da dinastia solar).

Evam paramparapraptamimam rajarsayo viduh.
Sa kaleneha mahata yogo nastah paramtapa. (2)

Desta maneira, os reis e os rsis conheciam este Yoga, adquirido em ordem sucessiva de mestre-discípulo.
Este se perdeu por muito tempo aqui neste mundo, ó destruídor dos inimigos!

Acho que esta já era uma pequena crítica que Krsna fazia àqueles que acreditavam estar criando um Yoga diferente daquilo que de fato é Yoga. Assim, o Yoga acabou se perdendo através de milhares de distorções e também através daqueles que estão fora do parampara (o ensinamento do mestre ao discípulo). Ninguém aprende sozinho. Na tradição não existe Yogi auto-didata.

sábado, 8 de maio de 2010

Criatividade e Tradição



Qual é o limite entre criatividade e tradição? Até onde poderíamos usar nossa liberdade pessoal como yogis sem deformar o que aprendemos com nossos professores? Acredito que a resposta a estas questões esteja na correta compreensão do que o Yoga é, e da maneira em que ele funciona. Lembremos então que o Yoga tradicional é uma forma de vida que abrange duas dimensões.

Essas dimensões são as seguintes: 1) um ensinamento que se aplica na vida, chamado Brahmavidya, que vem junto com uma metodologia peculiar através da qual é transmitido, e 2) o ensinamento “técnico”, chamado Yogashastra, que também tem duas partes: uma que se faz na sala, que consiste na aplicação de técnicas como o código de conduta, as posturas, respiratórios, concentração, meditação, etc., e outra que se realiza fora dela, vinculada com o cultivo das atitudes adequadas e o uso correto do livre arbítrio. Dentro dessa ordem de coisas, não é difícil confundir meios e fins, como tem acontecido com certa assiduidade.

Muitas vezes, olhando para a história recente do Yoga, tendemos a ver uma homogeneidade na maneira em que foi transmitido. Porém, olhando um pouco mais de perto a trajetória desse ensinamento nas últimas décadas, essa impressão se esvai. Cada professor segue seu próprio caminho e as diferenças entre o que eles ensinam pode ser enorme. Para tentar explanar esta situação, bem como para ilustrar a questão dos limites entre criatividade e tradição, este texto apresenta uma breve descrição do ensinamento do lendário mestre Krishnamacharya e as diferentes interpretações e abordagens que seus discípulos Iyengar, Jois e Desikachar fizeram desse ensinamento.

Algo que chama a atenção, que aconteceu paralelamente à crescente popularização do Yoga, é que, em algumas das leituras contemporâneas do Yoga, a visão e metodologia de ensino sobre o autoconhecimento foram esquecidas ou deixadas de lado, em favor da execução das técnicas. A conseqüência natural dessa situação é que freqüentemente, a imagem do Yoga aparece tolhida, rasa e unidimensional.

As interpretações do legado de Krishnamacharya.

Srivatsa Ramaswami, professor que aprendeu durante 30 anos com Krishnamacharya afirma, em seu livro The Complete Book of Vinyasa Yoga (não traduzido para o português): “Durante esse primeiro período [da vida do mestre, até o início da década de 1950], dois dos estudantes de Sri Krishnamacharya se separaram dele para ensinar independentemente. Um deles era B. K. S. Iyengar, estudante e cunhado de Sri Krishnamacharya. Sendo jovem, e um dos primeiros estudantes de meu guru, Iyengar desenvolveu um estilo muito físico de Yoga, que era uma forma agressiva do método que ele havia aprendido com Krishnamacharya.”

O autor comenta que esse método, aliado ao tremendo controle corporal que Iyengar exibia, tornou seu Yoga muito conhecido e popular. Mais adiante, Ramaswami continua: “Não obstante, o método de Iyengar omitia alguns importantes ingredientes do ensinamento de Krishnamacharya, como a progressão ou o seqüenciamento dos ásanas, o uso de contra-posturas, e a sincronização completa da respiração. [...] Enquanto Iyengar corria o mundo e dirigia uma prestigiosa escola na Índia, Krishnamacharya continuou ensinando discretamente, majoritariamente um a um. Ele nunca viajou para o exterior – e nunca quis – mas teve alguns poucos estudantes ocidentais, como Indra Devi, que veio até ele.”

Num outro parágrafo, falando sobre outro famoso discípulo de Krishnamacharya, Ramaswami afirma: “O outro estudante de Krishnamacharya dos dias de Mysore era Pattabhi Jois, quem se tornou também tremendamente popular. Ele baseou seu método no pequeno livro de Krishnamacharya do início dos anos 1930, Yoga Makaranda, e o batizou de Ashtanga Yoga, inspirado no sistema óctuplo de Yoga clássico (embora ambos não estivessem realmente relacionados). O Ashtanga seguia um sistema de movimentos rápidos encadeados numa seqüência, embora estivesse ausente a respiração deliberada, suave e coordenada que era central no método de Krishnamacharya. Além do mais, a prática do Ashtanga adotou basicamente seqüências mencionadas no Yoga Makaranda, bem como algumas outras que Jois aprendeu de seu guru durante sua relação com ele – uma quantidade grande de seqüências que Krishnamacharya ensinaria mais tarde para seus estudantes foi conseqüentemente deixada de fora.”

Ramaswami é da opinião de que o ensinamento destes dois professores, além daquele ensinado pelo próprio filho do mestre, Desikachar, que tem uma abordagem muito mais parecida à do pai, é apenas uma parte do método que Krishnamacharya elaborou, chamado Vinyasa Krama. Além da prática física que ficou conhecida e popular através desses professores, o ensinamento original de Krishnamacharya incluía, assim como o de todos os seguidores da tradição, práticas devocionais, mantras, meditação, recitação, canto védico, dieta vegetariana, gramática sânscrita e estudo das escrituras do Yoga. Hoje em dia, essa dimensão do ensinamento parece estar ausente da maioria das escolas de Yoga da atualidade.

Desses exemplos, percebemos que estes dois professores seguiram caminhos independentes, bastante diferentes do mestre. Iyengar é conhecido pela capacidade de adaptar as técnicas, através do uso de props, para as possibilidades e necessidades de cada praticante. Nesse sentido, abriu as portas da prática do Yoga para pessoas que não tinham força, coordenação, flexibilidade ou saúde para se beneficiar das formas de prática mais exigentes. Ele fez isso usando sua criatividade e profunda intuição. Jois, por seu lado, parece ter se limitado a transmitir fielmente as técnicas e os seqüenciamentos de posturas que aprendeu com o mestre através do texto acima mencionado. Isso explicaria o porquê da diferença entre os métodos ensinados por Iyengar e Jois.

As contribuições de ambos na popularização e divulgação do Yoga no ocidente são de fato inegáveis. Mas é inegável, igualmente, que as metodologias de ambos estão centradas principalmente na prática de posturas e respiratórios. Talvez como conseqüência dessa ênfase dada à prática, percebemos, na presente geração, uma certa indiferença em relação à visão e ao ensinamento fundamental do Yoga, com os praticantes centrados mais na execução das técnicas do que na aplicação dos valores do Yoga na vida.

Muitos professores e yogis dedicados consideram que, embora praticar posturas e respiratórios seja importante, não devem ser subestimadas as demais partes da tradição. Krishnamacharya, como muitos outros professores comprometidos com essa tradição maior, era profundo conhecedor e capaz de recitar de memória longos trechos das Upanishads, da Bhagavad Gita, do Yoga Sutra e outros textos essenciais da nossa tradição. Observando a trajetória deste grande mestre, vemos que não é diferente do caminho percorrido por outros que lhe precederam, bem como por muitos yogis da atualidade.

Alhos e bugalhos.

E nós? Até onde deveríamos usar a criatividade sem atropelar a tradição? Até onde poderíamos usar a iniciativa sem sacrificar, diluir ou deformar aquilo que nos foi ensinado? Para responder adequadamente a estas questões, é preciso separar alhos de bugalhos. (Para os curiosos: um bugalho é uma saliência arredondada que se forma em algumas espécies de árvores da família do carvalho a partir de um ovo de vespa. A vespa desenvolve-se no interior do bugalho, onde viverá suas metamorfoses: larva, ninfa e fase adulta. Antigamente, as crianças portuguesas usavam bugalhos como bolinhas de gude.) Por mais que tanto os alhos como os bugalhos tenham forma arredondada, não devemos confundir uns com os outros.

Quando dizemos que não é aconselhável confundir alhos com bugalhos, não estamos afirmando que os alhos sejam bons e os bugalhos ruins, mas que são coisas distintas. A visão do Yoga é uma coisa; a prática, outra diferente. O ensinamento do Yoga é chamado Brahmavidya, que significa literalmente “autoconhecimento”. Brahman é o Eu. Vidya é conhecimento. Portanto, Brahmavidya quer dizer conhecimento do Eu, ou conhecimento de si mesmo. A aplicação desse ensinamento é denominada Yogashastra, ou “ciência de integração”. O ensinamento é a visão do Yoga. A aplicação dele é a técnica.

Um esclarecimento importante: algumas pessoas pensam que essa visão do Yoga seja um método de filosofia. Em verdade, ela não é uma filosofia, mas um meio de conhecimento que revela quem somos. É por essa razão que no Jñana Yoga, o Yoga do Conhecimento, se dá tanta importância ao uso correto da palavra. Essa visão é a ferramenta que nos permite compreender quem somos, da mesma maneira que o olhar serve para enxergar formas e cores, a audição nos permite reconhecer os sons, o olfato os cheiros, etc.

Para que o Yoga possa ser chamado Yoga, é necessário que haja não apenas aplicação de técnicas, mas igualmente uma integração delas com o ensinamento na vida prática. Por outro lado, para que o método de transmissão do ensinamento mereça o nome de Yoga, é necessário, da mesma maneira, que ele seja aplicado na vida. De nada adianta, como querem alguns “yogis de sofá”, apenas sentar para ouvir o ensinamento, sem implementar o ensinamento na vida. Nessa situação, sem integrar visão e ação, o conhecimento sobre si mesmo fica reduzido a uma teoria. Teorias são explanações mais ou menos plausíveis, que podem ser adotadas ou descartadas, conforme a situação. Porém, acontece que você não é uma teoria, e que o conhecimento de si mesmo não é de maneira alguma algo “teórico”.

Por outro lado, técnicas existem muitas e podem ser aplicadas por diferentes pessoas, em diferentes momentos e ocasiões, com o objetivo de aplicar na prática o ensinamento sobre si mesmo. A visão é uma só. Consideramos que as técnicas são aquilo que muda, enquanto que a visão e a metodologia que a transmite são elementos invariáveis. Sobre as técnicas podemos aplicar a criatividade. O que creio que não cabe é tentarmos mudar ou “aperfeiçoar” esse meio de conhecimento que é a visão do Yoga. Isso seria tão estéril quanto tentarmos ouvir sons com os olhos, ou perceber cheiros com os ouvidos. Tentativas de integrar a visão do Yoga com fragmentos de sistemas psicológicos ou tradições espirituais como o xamanismo nem sempre produzem o resultado esperado.

Portanto, podemos exercer a nossa criatividade em relação às técnicas do Yoga, às práticas de posturas ou respiratórios. Podemos (e devemos) adaptar o que for preciso, em termos de ásana e pranayama, às necessidades específicas do nosso corpomente a cada momento e em cada situação que vivemos. Na mesma linha, temos toda a liberdade para escolhermos as melhores formas de meditar, dentre aquelas que forem mais eficientes e significativas para nós. Temos o direito de escolher os mantras e os temas para trabalhar através das nossas resoluções interiores. Podemos exercer o livre arbítrio para definir quais serão as reflexões que precisamos fazer em relação ao código de conduta do Yoga e os votos que fazemos em relação a eles.

Porém, não deveríamos tentar mudar a visão, que é um meio de conhecimento completo e acabado. Como exemplo, poderíamos mencionar o caso do famoso mestre Adi Shankaracharya. Algumas pessoas pensam nele como um filósofo que fez grandes contribuições ao Vedanta, mas a verdade é que Shankara foi apenas mais um acharya, um professor. Um professor notável, é verdade, mas que limitou-se a transmitir este ensinamento sem inventar nada, sem acrescentar ou criar nada novo.

Sua missão foi unicamente atualizar a linguagem em que o conhecimento era transmitido, para torná-lo mais acessível às pessoas do tempo em que ele viveu. Brahmavidya, como meio de conhecimento sobre si mesmo, é algo absolutamente invariável, que não está sujeito a nenhum tipo de ajuste ou aperfeiçoamento. O Ser não muda. A maneira em que ele deve ser conhecido, tampouco. Compreendido isto, olhando para esse universo que é o Yoga em termos de prática e ensinamento, podemos exercer a criatividade e liberdade onde corresponde, e ficarmos abertos e receptivos em relação ao poder transformador da sabedoria do Yoga, que está disponível para nós na forma do autoconhecimento.

Um esclarecimento final: quando dizemos “o Ser não muda. A maneira em que ele deve ser conhecido, tampouco”, não estamos afirmando que os yogis tenhamos algum tipo de monopólio sobre o autoconhecimento e o método que conduz a ele. Algumas pessoas, ao estudarem Jñana Yoga ou Vedanta, acabam por se confundir e fazer afirmações taxativas como “somente meu método liberta”. O estudante deve ter muito cuidado com o fanatismo e se afastar de atitudes sectárias.

Nós chamamos o Yoga de Yoga por que foi com esse nome que este sistema chegou até nós. Porém, isso não significa que o ensinamento do Yoga não existisse ou exista atualmente sob outras formas ou com outros nomes, noutras culturas e lugares. Alguns exemplos de formas de Yoga não indianas são estas: o sufismo, o taoísmo, o budismo tibetano, o budismo zen, e a filosofia de ocidentais como Aristóteles, Epicuro, Spinoza e Schopenhauer. Swami Dayanada considera que qualquer ensinamento ou doutrina que mostre a identidade essencial entre o indivíduo e o todo, e que seja acompanhado de um método para exposição e aprendizado, pode ser chamado Brahmavidya, independentemente do nome que tenha recebido originalmente. Namaste!

Texto de Pedro Kupfer